Jornalista botucatuense lança livro sobre fotógrafo que perdeu a visão nas manifestações de junho de 2013
Três anos depois, ‘Memória Ocular’ fala sobre a vida de Sérgio Silva e os desdobramentos políticos dos protestos em São Paulo

por Sérgio Viana
Três anos após as manifestações contra o aumento da tarifa de transporte público (ônibus, trens e metro) da capital paulista, conhecidas como “jornadas de junho”, o jornalista botucatuense Tadeu Breda (31), que cobria os fatos pela Rede Brasil Atual, lança o livro ‘Memória Ocular’, onde conta a história do fotógrafo Sérgio Silva, que foi atingido por uma das 506 balas de borracha disparadas pela Polícia Militar de São Paulo enquanto trabalhava, acabando por perder a visão, no dia 13 de junho de 2013.
“A marcha se dirigia do centro da cidade à Avenida Paulista, mas foi barrada pelas forças de segurança na esquina das ruas da Consolação e Maria Antonia. Foi bem ali que o fotógrafo Sérgio Silva, que cobria a manifestação, recebeu um tiro de bala de borracha no olho esquerdo”, explica Breda, que não conhecia o fotógrafo. “Sérgio é apenas uma dessas vítimas. Entre altos e baixos, alternando momentos de depressão e com vontade de viver, trabalhar e fotografar, continua lidando com a violência que sofreu, sabendo que jamais conseguirá se desvencilhar dela – nem física nem psicologicamente”.
Em 100 páginas, ‘Memória Ocular’ trata de diversos aspectos que dizem respeito às manifestações de junho de 2013, além da história de Sérgio. O jornalista-autor entrevistou diversos políticos, policiais, juristas e até fabricantes de bala de borracha, para escrever o que ele define como um “manifesto narrativo”.
O trabalho visual e imagético do fotógrafo Sérgio também influenciou o trabalho de escrita de Tadeu Breda e a edição de ‘Memória Ocular’. Além do jornalista-escritor, os ilustradores Breno Ferreira, Carolina Ito, Mateus Acioli, Vitor Flynn e João Ricardo Moreira compõem a obra com projeto gráfico de Denise Matsumoto. “A obra é coletiva. Somos sete pessoas diretamente envolvidas, além do próprio Sérgio Silva, que me concedeu o privilégio e ouvir e contar sua história – que também é minha”, frisa Breda, que atualmente é jornalista independente e coordenador da Editora Elefante.
Confira abaixo a entrevista:

Notícias.Botucatu: Por que você decidiu contar a história, acompanhar, o personagem de Memória Ocular, o fotógrafo Sérgio Silva? Você já o conhecia? Como ele está hoje?
Tadeu Breda: Tenho uma ligação emocional e política muito forte com as jornadas de junho de 2013 – sobretudo com seus primeiros dias. Naquela época, estive nas ruas de São Paulo como repórter, cobrindo as manifestações para o portal de notícias Rede Brasil Atual, onde então trabalhava. Com os pés no chão, tomando chuva e correndo das bombas da Polícia Militar, vi com meus próprios olhos o movimento crescer dia após dia, protesto após protesto, com uma reivindicação bastante concreta: a revogação do aumento da tarifa de ônibus, trem e metrô na capital. Com essa pauta única, o Movimento Passe Livre conseguiu unificar vários coletivos, grupos e movimentos de esquerda paulistanos – inclusive a juventude municipal do PT, que engrossou as manifestações apesar de o partido estar à frente da prefeitura com Fernando Haddad. Nos primeiros dias das jornadas de junho de 2013, que começou no dia 6, não havia menção alguma à corrupção, à Copa do Mundo, ao presidente do Senado, Renan Calheiros, ou à PEC 37. Muito menos havia manifestantes vestidos com o verde-amarelo da bandeira nacional. Isso aconteceria só depois do dia 13, quando a Polícia Militar de São Paulo, respaldada por reportagens agressivas da Rede Globo e editoriais da Folha de S. Paulo e do Estado de S. Paulo, resolveu reprimir com extrema violência o quarto protesto contra o aumento da tarifa. A marcha se dirigia do centro da cidade à Avenida Paulista, mas foi barrada pelas forças de segurança na esquina das ruas da Consolação e Maria Antonia. Foi bem ali que o fotógrafo Sérgio Silva, que cobria a manifestação, recebeu um tiro de bala de borracha no olho esquerdo. O livro conta essa história. Para isso, revisitei aquela noite violenta e procurei contextualizar o movimento pela revogação da tarifa. Conversei com advogados, policiais, parlamentares, procuradores, manifestantes, fabricantes de bala de borracha e, obviamente, com Sérgio Silva, seus amigos e familiares, na tentativa de compreender o que é ser uma vítima do Estado. Eu não conhecia Sérgio. Meu primeiro contato com ele foi uma foto sua que circulou muito nas redes sociais logo depois daquela jornada repressiva: um rapaz chorando, com os olhos fechados, sentado numa cadeira de rodas e vestido com roupa de hospital. Ao lado de outra repórter, Giuliana Vallone, que também tomou um tiro de bala de borracha no olho, mas, felizmente, não perdeu a visão, a imagem de Sérgio foi o retrato do dia 13 de junho de 2013. Entre mais de 150 feridos, ele foi a vítima mais grave da repressão policial às jornadas de junho em São Paulo. É uma história que – junto a outros casos de violência policial que se repetiram pelo país, inclusive com mortes – precisa ser contada, conhecida e repudiada. Por dois motivos, sobretudo: primeiro, porque não podemos tolerar um Estado que utiliza politicamente suas forças policiais para reprimir manifestações contrárias às suas medidas – e isso está cada vez mais nítido em São Paulo –, reprimindo, ferindo gravemente e às vezes matando manifestantes, jornalistas, transeuntes e quem mais estiver circulando nos locais dos protestos; segundo, porque a história das vítimas do Estado não pode ser esquecida: são as vítimas que carregam no corpo e na lembrança, com efeitos permanentes, as marcas de nossa democracia fictícia. Sérgio é apenas uma dessas vítimas. Entre altos e baixos, alternando momentos de depressão e com vontade de viver, trabalhar e fotografar, continua lidando com a violência que sofreu, sabendo que jamais conseguirá se desvencilhar dela – nem física nem psicologicamente.

Notícias.Botucatu: Você define Memória Ocular como um manifesto narrativo. O que isso quer dizer? Seu manifesto se refere diretamente a que? Ao personagem, às causas e protestos de junho de 2013 ou a denunciada truculência com que atos deste tipo são reprimidos?
Tadeu Breda: Digo que o livro é um “manifesto narrativo” porque ele demonstra – ou tenta demonstrar – que a violência do Estado causa danos permanentes nas vítimas. No Brasil, sobretudo quando tentamos falar sobre os crimes cometidos pela ditadura, muitas vezes ouvimos que não devemos ficar remoendo o passado, que devemos esquecer o que passou e olhar para o futuro. Ora, esse é o discurso dos algozes, de quem não sofreu com a repressão, de quem compactuou com os desmandos do Estado ou simplesmente fez ouvidos moucos, não se posicionou, apoiando, assim, mesmo que indiretamente, os sequestros, torturas, assassinatos e desaparecimentos daquela época. As vítimas – e quem se solidariza com as vítimas – sabem que a violência do Estado não é coisa do passado. Ela está presente na vida de quem sofreu. Quem apanha nunca esquece – nunca. Os efeitos da violência do Estado não é coisa do passado, mas sim assunto para o futuro. Não só porque as agressões deixam marcas indeléveis no corpo e na mente das vítimas, mas também porque continua acontecendo. Violência do Estado não é só coisa da ditadura. As polícias continuam matando e torturando, sobretudo negros pobres das periferias urbanas. Se antes a “desculpa” era o combate à subversão, agora é o combate ao crime, às drogas. A Polícia Militar de São Paulo – e do Rio de Janeiro – ostenta níveis de assassinato inaceitáveis. Um em cada quatro homicídios registrados na cidade de São Paulo é provocado pelas armas da PM. Ou seja, 25%. Isso é democracia? Como já mencionei, o caso de Sérgio é apenas mais um – e nem é o mais grave. É apenas mais um, que não ocorreu na periferia, não ocorreu numa operação policial contra o crime, mas sim em uma área nobre da cidade, durante uma manifestação pacífica, com dezenas de jornalistas registrando tudo. E ainda assim aconteceu. O que acontece quando ninguém vê? E por que continua acontecendo?
Notícias.Botucatu: Por que os acontecimentos de 2013, mais especificamente junho, merecem ser registrados em sua obra? Para você, o que levou a tal mobilização social e hoje, ou num futuro próximo, é possível existir algo parecido?
Tadeu Breda: Os sentidos das jornadas de junho de 2013 ainda hoje estão em disputa. Quem esteve nas ruas sabe que aquelas manifestações não tinham nada a ver com o que se tornaram em seus últimos dias, depois que os meios de comunicação, até então contrários aos protestos, passaram a apoiá-los, descaracterizando suas reivindicações iniciais e transformando aquela onda de rebeldia em uma mobilização conservadora que, na minha opinião, resultou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Os grandes meios de comunicação, que sempre atuaram como partidos no Brasil, foram muitos hábeis em sequestrar as jornadas de junho. Primeiro, pediram truculência policial. A truculência veio, mas não funcionou: Sérgio perdeu um olho, outras 150 pessoas se feriram, mais de 200 foram presos, mas os protestos continuaram – e crescendo. Então, eles mudaram de tática. Isso fica muito claro quando escutamos dois comentários de Arnaldo Jabor na rádio CBN. Antes de 13 de junho, dia da grande repressão, o colunista havia ofendido os manifestantes e dizendo que a manifestação não passava de uma reunião de meninos mimados. Depois, quando mais gente foi pra rua, o mesmo Jabor descontrói sua própria opinião, descontextualiza um slogan dos protestos – Não é só por 20 centavos – e dá o tom que seria adotado pela massa verde-amarela dali em diante: é contra a corrupção, é contra a Copa, é contra tudo o que está aí. Não era, nunca foi. Mas já era tarde. Na manifestação que ocorreu na Paulista depois da vitória, quando Alckmin e Haddad decidiram reduzir a passagem, pessoas vestidas com as cores da bandeira do Brasil espancaram militantes de partidos e movimentos sociais, rasgaram e queimaram suas bandeiras. Foi muito simbólico. O verde-amarelo tomou as ruas e expulsou o vermelho. Em 2015, movimentos oportunistas, como Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua e Revoltados Online se apropriariam de expressões e formas de mobilização criadas em junho de 2013 para defender o impeachment. Com o apoio da mesma grande imprensa, levaram rios de pessoas às ruas e alcançaram seus objetivos. Junho de 2013 está na raiz dos acontecimentos políticos atuais. O livro é uma humilde tentativa de construir uma narrativa contrária às deturpações das corporações midiáticas e seus aliados nas ruas e no Congresso.
Notícias.Botucatu: Como o texto e as ilustrações de Memória Ocular dialogam? O que elas representam em relação a sua obra e ao fotógrafo, Sérgio? A mistura de linguagens (textual-visual) foi uma escolha sua?
Tadeu Breda: As ilustrações são capazes de transmitir mensagens que o texto não consegue – e vice-versa. Por isso, sempre achei que se complementam muito bem. Daí a iniciativa de publicar um livro com ambas linguagens. Isso também confere uma certa multiplicidade de olhares sobre o episódio – multiplicidade que não se restringe apenas às ilustrações. O projeto gráfico também é um trabalho autoral: a escolha das letras embaralhadas na capa, por exemplo, foi feita deliberadamente como referência à cegueira parcial do personagem do livro. A obra é coletiva. Somos sete pessoas diretamente envolvidas, além do próprio Sérgio Silva, que me concedeu o privilégio e ouvir e contar sua história – que também é minha. Todos sofremos, indiretamente, com seu sofrimento.
Memória Ocular
Autor: Tadeu Breda
Ilustrações: Breno Ferreira, Carolina Ito, Mateus Acioli, Vitor Flynn e João Ricardo Moreira
Projeto gráfico: Denise Matsumoto
Revisão: João Peres
Editora Elefante
Impressão em risografia: Meli Melo Press
Publicação: 13 de junho de 2016