Carta aberta ao ex-prefeito Antônio Mário Ielo
por Cláudio Coração
Caro Ielo,
Sempre admirei sua postura política. Enquanto ainda residia (ou votava) em Botucatu, fui seu eleitor: 1996, 2000, 2004. A eleição de 2000 mudou a história política da cidade. Não é exagero afirmar isso. Ainda lembro que antes daquela sua vitória, Botucatu vivia acomodada numa espécie de resignação provinciana, com a política feita em cafés do centro, com as decisões do município sendo tomadas em rodas restritas de “privilegiados” (Hoje os filhos e netos daqueles “privilegiados” governam a cidade). Seu governo trouxe ventos novos, não nos esqueçamos: dignidade ao funcionalismo público, redução dos apadrinhamentos, construção de muitas escolas, infraestrutura na periferia, orçamento participativo etc.
Não seria leviano afirmar, meu caro, que Botucatu se tornou outra depois de sua administração. A cidade ficou mais arejada, vamos usar esse termo. Houve mais compreensão dos diversos atores sociais do município.
Bem, fiquei sabendo que o senhor mudou de partido. Saiu do PT e foi para o PDT. Até aí tudo bem. Se não fosse os dissabores das circunstâncias. Num primeiro momento a palavra “oportunismo” bateu como martelo em meus ouvidos. Explico, depois de militar por anos no Partido dos Trabalhadores (com todas as dores e as delícias), o ex-prefeito agora se enreda por um caminho mais “fisiológico”, para se tornar candidato com “chance de vitória” em 2016? Negando sua identidade política? Que triste guinada pragmática, pensei.
Essa impressão sobre um dado “oportunismo” ganha ainda mais sentido, prefeito, se observarmos o sentimento de ódio que boa parte dos paulistas nutre pelo PT neste momento. Um ódio meio patológico, vamos combinar. Abandonar o barco agora, neste instante, não seria um sinal de “covardia”, de “traição”? Principalmente em um cenário político movido mais pelo fígado do que pela cabeça.
O senhor sabe mais do que ninguém, entretanto, que o PT não tem mais o frescor de outros tempos. O PT botucatuense então. Se o pragmatismo tornou-se a regra da prática política nacional, é bom lembrar que em Botucatu tal procedimento também é comum. O senhor mesmo firmou ou negociou alianças despropositadas. Por exemplo, unindo-se a um frágil e manco PMDB local. Deu com os burros n´água em duas ocasiões: 2008 e 2012.
Sabemos também, caro Ielo, que a falta de “trabalho de base” talvez tenha sido o principal defeito de sua administração. A eleição perdida para João Cury (PSDB) em 2008 se deu, entre outros motivos, porque não havia na cidade um sentimento emancipado de identificação dos “donos do poder econômico”. Por isso, a despeito do baixo carisma do candidato Pinho, a população mais pobre da cidade não se sentiu convencida a apoiar um projeto vinculado com o PT e com o seu nome. Que naquela oportunidade tinha mais de 80% de aprovação popular.
Além disso, é bom salientar que os tucanos sempre tiveram muita força em Botucatu. Mário Covas, por exemplo, teve votações históricas em eleições passadas. Mas a administração petista na cidade, nos seus dois mandatos, foi bem sucedida. A partir de sua capacidade, de seu carisma, de sua competência. Mas também de um “método petista de governo”, mais preocupado com questões sociais e coletivas. Um governo mais “popular”, em síntese, com todas as controvérsias que esse termo pode provocar. A cidade reconhece isso, desconfio. Na última eleição de 2012, mesmo com todo o aparato midiático-jurídico-econômico montado em apoio à candidatura tucana, o senhor teve quase 41% dos votos válidos. Um fenômeno dadas as circunstâncias. Seus adversários não se cansam de tentar detoná-lo politicamente. Diuturnamente. Não deixa de ser um reconhecimento de sua força. Em geral, o discurso mais recorrente deles é um certo ressentimento diante das transformações históricas pelas quais o país passou, com o PT no governo federal. Os avanços sociais com Lula e Dilma são conquistas incontestáveis. Mesmo com tantas concessões feitas. Mas o tom udenista e golpista do “mar de lama que assola o país” é usado, muitas vezes, para linchar não só as reputações de quem milita no PT, mas também estigmatizar toda uma ideia de representação política de esquerda.
O reacionarismo está no ar, prezado Ielo. Saltar para o PDT não mudará os ânimos. A aridez nas relações no estado de São Paulo, neste momento, é fruto desse reacionarismo, mais do que qualquer crise econômica. Como temos visto nas ruas: desde cartazes pedindo o retorno da ditadura até agressões a determinadas figuras públicas.
Penso que o senhor tenha se convencido a sair do PT muito em decorrência dessa hostilidade no debate político, cuja percepção de parte da sociedade, principalmente os leitores e consumidores das informações da “velha mídia”, é de que a corrupção está atrelada no DNA petista. Bem, quem acredita nisso acredita em qualquer coisa, não é mesmo? Tenho a impressão, também, de que o poder de mobilização do Partido dos Trabalhadores em Botucatu seja quase nulo. O senhor mesmo disse em entrevistas recentes que lamenta fatos ocorridos com o partido.
O PT minguará em Botucatu, com a sua saída, a da vereadora Rose Ielo, e a do vereador Lelo Pagani. Agora, será que esse descolamento do PT, pura e simplesmente, resolverá problemas mais estruturais? Será que o fato de o senhor “refundar” o PDT na cidade, neste contexto, com os irmãos Ciro e Cid Gomes como fiadores políticos, é suficiente para a organização de uma frente de centro-esquerda relevante e robusta na cidade? Tenho minhas dúvidas. Os grupos mais conservadores controlam as cartas do jogo político botucatuense, por ora. Não é com peripécias pragmáticas que os “políticos de esquerda” da cidade irão reconquistar a hegemonia e o coração dos eleitores. De novo, é bom se lembrar da falta de um trabalho mais orgânico com as bases, prefeito, quando ainda governava o município.
Repito, sua saída do PT pode soar como oportunista. Como também pode soar como um falso alarme para desavisados de que haja um “movimento de manada”. O presidente estadual do PT em São Paulo, Emídio de Souza, disse que há muitos assédios, muitas chantagens em curso, um “salve-se quem puder”. E, cá entre nós, isso não mudará em nada o tom hostil da campanha do ano que vem. O clima de ódio, agressividade e medo contaminou a política. O melhor prefeito que Botucatu já teve (opinião de tanta gente) corre o risco de ver seu nome, politicamente, preso a frágeis perspectivas, de não falar com emergência para os jovens eleitores, para as trabalhadoras e os trabalhadores da cidade. Sua saída do PT pode enfraquecer, com uma cajadada só, o partido e seu próprio nome como opção política na cidade.
Há jornalistas e radialistas que nutrem um sentimento doentio pelo senhor. Todos os dias se esgoelam em injúrias, vinculando seu nome a algo vil. É desse clima de hostilidade que não há como fugir. É preciso enfrentá-lo. E aí, não importa se no PT ou no PDT. Haverá disposição para isso? Não saberia medir a força das vozes hostis na opinião pública botucatuense, o poder de convencimento da fala raivosa. Mas Botucatu, como uma “cidade de classe média”, pode fazer do julgamento moral um valor político. E sabemos os riscos do debate político corroído por valores morais, prefeito. E isso não se resolve trocando de partido.
Mesmo com todos os problemas e decepções que, eventualmente, o senhor tenha tido no PT, é preciso reforçar o lado pedagógico da luta política. Em recente entrevista, o sociólogo português Boaventura Souza Santos diz o seguinte: “A nova classe média é tipicamente ingrata a quem lhe dá condições para ascender ao novo estatuto e tende a identificar-se com os que estão acima dela e não com os que estão abaixo”. Nesse sentido, me parece que a Botucatu de hoje está mais seduzida, sociologicamente, a se enveredar por nomes apoiados pelos irmãos Cury. ‘Ah, mas restaria o povo como válvula de escape do clima Fla x Flu entre PT e PSDB, e, aí, o PDT seria uma opção’. Será, meu caro prefeito? O problema é a polarização ou a fragmentação partidária, no fim das contas? Será que os jovens, trabalhadoras e trabalhadores da cidade estão dispostos a encarar esse arremedo de “terceira via”? As tantas mudanças partidárias, de tantos políticos da cidade?
Por fim, prefeito, quero destacar um trecho do livro a “História do PT”, do historiador Lincoln Secco: “Na verdade, nunca foi fácil enquadrar o PT em modelos. Se é verdade que ele transitou para um tipo profissional-eleitoral, continuou com as características de partido de massa”. É perceptível o diagnóstico das ambivalências do PT. Entender que o PT se encontra numa reavaliação moral é válido. Mas é um engano achar que um partido de massas (talvez o único do país nos últimos 40 anos) morra do dia para noite. Por mais que haja muita torcida nesse sentido, essa projeção é imprecisa. Sua saída do PT é simbólica. Para o bem e para o mal. Mas a ida ao PDT vai jogar luz à cena atual, na assimilação ideológica do saudoso Leonel Brizola, tão hostilizado em outros tempos nas terras paulistas? São muitas questões. Dilemáticas. O desafio, prefeito, não pode ser somente – como no caso da capital paulista – a chance de disputar uma eleição municipal, ao lado de figuras pavorosas como Major Olímpio, sem o rótulo de petista (embora ache que essa marca já esteja impregnada no senhor, queiramos ou não); é necessário desenhar um quadro que una as forças preocupadas com a inserção de Botucatu no mundo de seu tempo. Olhando daqui, com todas as vantagens e desvantagens da distância, tenho a impressão de que a cidade (não é a única, é verdade) vive uma espécie de melancolia política.
Mesmo que as escolhas de cunho pessoal devam ser respeitadas, quis compartilhar muitas das minhas angústias e projeções diante da sua mudança político-partidária. Espero, sinceramente, estar errado em muitas de minhas percepções. Talvez este seu lançamento a outra fileira partidária possa trazer mobilização de boas energias. Torço para que o senhor encontre os melhores sonhos, as melhores parcerias para as futuras empreitadas. Desejo sorte, muita sorte na travessia, com a ressalva de que, como diz o velho compositor: “meu pai sempre me dizia, meu filho, tome cuidado: quando penso no futuro não esqueço o meu passado”.
Cordialmente,
Cláudio Coração – botucatuense,atualmente, leciona sobre Comunicação Social na Universidade Federal de Ouro Preto (MG)