A fraqueza de um homem só
Gabriel Burnatelli de Antonio*
A riqueza da democracia não se encontra, a priori, no êxito de seus resultados econômicos, políticos e sociais, sobretudo porque os indivíduos democráticos reconhecem que quaisquer decisões tomadas sem o escrutínio do maior número possível de partes interessadas e/ou implicadas nas consequências de uma escolha redundará, inexoravelmente, em ineficácia, mesmo que a longo prazo, e, acima de tudo, em injustiça, pois minorias restarão alijadas do exercício ativo da cidadania e, como corolário, serão as primeiras a experimentar o passivo de decisões mal elucubradas.
Se somos seres políticos (zoon politikon) e, acima de tudo, democráticos, reconhecemos que a razão e a justiça, nos assuntos humanos, não são um apanágio dos heróis ou de homens e mulheres dotados de excepcional clarividência; não resultam da mera inspiração ou do improviso de líderes que desfrutam de profunda aclamação popular; não surgem naturalmente pela punição dos corrompidos; não florescem no vácuo institucional; e, por fim, não dependem de circunstâncias excepcionais, como a crise, para que emerjam.
A democracia é um regime político desejável porque, acima de tudo, pressupõe 1) a reavaliação permanente das instituições, seja para aperfeiçoá-las, quando funcionam bem, seja para reformá-las, quando soçobram; 2) a crítica e a autocrítica da sociedade; 3) a existência de freios e contrapesos que salvaguardam o exercício das liberdades públicas e privadas; 4) a instituição de procedimentos que limitam o fluxo das paixões e obrigam os cidadãos participantes ao exercício da política, ou seja, da negociação e, acima de tudo, do respeito à liturgia da lei.
Todavia, para que o regime democrático engrene suas peças e produza movimento, é preciso que o leito socializador dos indivíduos seja consentâneo às exigências e expectativas da vida democrática. Em outros termos, é preciso que a democracia seja ensinada, exemplificada e transubstanciada em valor cultural, algo que indubitavelmente não é fácil, mormente se considerarmos que, passados quase 28 anos do retorno à democracia no Brasil, continuamos majoritariamente presos ao facciosismo ideológico, ao moralismo que clama por justiçamento, à busca de heróis e interventores (sobretudo juízes) que se obriguem às tarefas que somos incapazes de realizar coletivamente, à intolerância e, por conseguinte, à incapacidade de construir pontes e coalizões que suportem alguma unidade na diferença e, acima de tudo, na divergência.
O aziago fla-flu entre PT e PSDB, sobejamente alimentado, nas últimas décadas, pelos próceres de ambos os partidos, mas, urge salientar, especialmente mobilizado por Lula, com sua retórica verborrágica que costumeiramente inicia-se com um nunca antes na história desse país, criou uma espécie de jactância ideológica da esquerda petista, cuja soberba sequer foi capaz de transigir com diversas outras tendências internas ao partido, que foram sendo paulatinamente expulsas ou tangidas para a margem e esquecidas pelo conjunto mais amplo da militância e, obviamente, pelos quadros dirigentes do partido que comanda o governo federal há mais de uma década.
Se um partido é incapaz de construir unidade internamente de forma democrática – através da divergência, mas visando à construção do consenso –, como pode alçar-se à condição de dirigente nacional, ainda mais quando, por força do voluntarismo de um homem só, lança à presidência da República uma pessoa completamente destituída de aptidão para a política? Ao conseguir eleger Dilma como presidente, Lula consumou o fla-flu, desfazendo, por completo, os elos que o ligavam, de maneira mais orgânica, ao partido e à sociedade.
Lula comportou-se como um desorganizador da cultura, cevando polarizações que foram se açodando ao longo dos últimos anos, culminando na bipolarização mentecapta que, de um lado, acolhe aqueles que rotulam genericamente de “coxinhas” todos os que desaprovam os procedimentos nada republicanos do PT no poder, e, de outro, abre flancos para uma direita fascista que, como um vírus, aproveita-se do momento de fragilidade institucional e de aguda radicalização política para açular os ânimos dos descontentes e conclamá-los à ruptura da democracia.
Em “Os intelectuais e a organização da cultura”, Gramsci adverte que:
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”, já que não apenas orador puro — e superior, todavia, ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho, eleva-se à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece “especialista” e não se chega a “dirigente” (especialista mais político) (GRAMSCI, 1982, p.8).
O intelectual moderno, para Gramsci, é capaz de articular o conhecimento especializado com o senso comum, construindo, organizando e persuadindo aqueles que, inseridos na trama das questões práticas da vida, ele pretende dirigir. Se, por um lado, o intelectual-dirigente “dribla” as armadilhas da oratória (“motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões”), por outro, ele dispõe de predicados que o levam a superar o caráter abstrato da técnica, inserindo-a numa “concepção humanista histórica”, dotada, portanto, de sensibilidade política e orientada à realização de uma teleologia emancipatória.
Lula poderia ter consagrado a aliança entre política, técnica e cultura, não só pelo que representa (um nordestino, oriundo do “Brasil esquecido”, que se tornou moderno, a princípio, pela via operária, e, posteriormente, pela política, alcançando, através da última, a presidência da República), mas pelo que efetivamente ele teve a oportunidade de fazer, e não fez: reconhecer abertamente os ganhos constitucionais e políticos do país nas décadas que precederam o seu mandato presidencial, aproximando os setores socialmente emergentes das camadas sociais mais modernas e empoderadas, entre as quais, inclusive, diversos setores sociais ligados à oposição, como o PSDB.
Ao afastar uma parcela politicamente significativa do Brasil moderno – constituída majoritariamente por frações mais favorecidas da classe média – do discurso e da performance propagandista do PT, Lula isolou ainda mais aquela que por intermédio dele foi eleita, e cuja habilidade para a concertação e o diálogo é reconhecidamente desastrosa. Dilma, de perfil estritamente técnico, imbuída de convicções pessoais bastante empedernidas, e Lula, eminentemente político, dotado de uma oratória bastante peculiar, que por vezes beira à bufonaria e ao escracho, representam justamente a cisão daquilo que é fundamental para a formação de um bom dirigente.
Não há arcabouço institucional, por mais avançado que seja, capaz de resistir ao desleixo dos dirigentes para com a política. A exemplaridade, o respeito à coisa pública, o diálogo aberto e democrático com toda a sociedade são fundamentais para o exercício da política e, ao mesmo tempo, para o aperfeiçoamento da cultura democrática, sobretudo num país cujas tradições políticas são marcadamente autoritárias.
Em “Como tirar proveito de seus inimigos”, Plutarco observa que um homem estará mais distante de invejar a sorte de seus amigos, ou o sucesso de seus parentes, se ele adquirir o hábito de elogiar seus inimigos, não sentindo nenhum resquício de ressentimento quando estes prosperarem. Com isto, grosso modo, Plutarco quis dizer que quanto mais somos capazes de lidar civilizadamente com quem nos defrontamos, mais somos capazes de governar a nós mesmos: aquele que se deixa consumir pela inveja é, antes de tudo, incapaz de aceitar que o outro possa ser aquilo que ele mesmo não é. Talvez, salvo engano, isto sirva de lição a Lula e ao PT: à medida que a jactância e a soberba foram se impondo ao PT governista, mais frágil ele se apresentou diante daqueles com os quais escolheu rivalizar, ao passo que menos dúctil ele se tornou perante os que dele ainda esperavam algum resquício de grandeza e generosidade.
- Gabriel Burnatelli de Antonio é doutor em Ciência Política pela UFSCar e pesquisador do Laboratório de Política e Governo da Unesp.

