Filhos da Rede

O mundo virtual passa a ocupar o espaço do mundo real

por professor Nelson* 

Professor Nelson é formado pela Unesp de Assis

Professor Nelson é formado pela Unesp de Assis

Enquanto um monge terminava o estudo da segunda carta do apóstolo Paulo aos coríntios, um escriba estava na oitava cópia de mais um livro que há poucos meses fora escrito. Pode-se imaginar que uma cena como essa tenha ocorrido em meados do século quinze, pouco antes de Johannes Gutenberg aperfeiçoar, na Alemanha, a prensa gráfica, contribuindo assim para uma transformação que ocorreria no planeta. O início da produção em massa de livros no ocidente demorou aproximadamente cinco anos, com a publicação de quase duzentas cópias da Bíblia em latim.

A invenção de Gutenberg teria papel fundamental para a divulgação de ideias que não só diminuiriam – por meio da Reforma Protestante – o poder da Igreja Católica, mas também colocariam o homem como o centro do mundo. Foram necessários quase cinco anos para a produção das cópias do primeiro livro impresso pela técnica de tipos móveis reutilizáveis, o que implicaria a defesa do homem pensante; todavia, aproximadamente cinco séculos depois, surge uma forma de divulgação de textos que coloca em dúvida a capacidade humana de ser o centro do mundo: a internet.

Palavras, fotos, desenhos, charges, falas, melodias, animações, filmes. A internet, criação humana, mediante muitas semioses, passa a ser um sistema capaz de conquistar o homem. Como se fosse um ser vivo, essa revolução digital fascina desde crianças até idosos – apesar de estes serem, hoje, em menor número; “hoje”, pois o clichê “uma vez que os jovens de agora serão os velhos de amanhã” faz-se verdadeiro. O mundo contemporâneo oferece ao ser humano novos sistemas de signos dentro de um único veículo de comunicação, uma rede de computadores dispersos pelo planeta que utilizam um protocolo comum.

A fantasia tornou-se realidade. A ficção científica transformou-se numa Quimera: rugindo como um leão, a internet passa a ser o rei da selva urbana; o som produzido pela cauda da serpente hipnotiza o homem; o fogo que sai de suas narinas consome a humanidade. Os vários sistemas de signos da fera que deixou de ser mitológica são as partes compositoras do animal fantástico. A sociedade do terceiro milênio não é capaz de controlar sua própria criação, pois o monstro de sonhos lhe oferece a possibilidade de viver em um mundo de ilusões, um mundo em que cada um pode ser outro da maneira que melhor o satisfizer.

O mundo virtual passa a ocupar o espaço do mundo real. A realidade humana vive de uma constante busca pela felicidade seja por bens materiais, pela fama, pelo conforto religioso, por prazeres físicos ou intelectuais. O fato é que o homem moderno está se desligando de sua origem na qual vivia em grupos. A preocupação egocêntrica da maioria torna a sociedade um lugar cada vez mais inóspito, mais indesejável. Muitos procuram transformações até físicas, por cirurgias plásticas, o que prova o anseio em ser outra pessoa. O mundo virtual oferecido pela internet vem preencher essa importante lacuna sentimental, pois nele “existe” prazer, vida em conjunto, amizades, ambição, fama, desejos reprimidos que podem ser liberados; o homem é capaz de criar outra personalidade e de vivê-la, ainda que seja numa abstração. Ou o homem encara a realidade ou faz-se acreditar num mundo irreal fugindo da verdade.

Mas seria a revolução tecnológica de comunicação um vilão para o homem? Para aqueles que se sentem bem em viver no mundo digital, a internet surge como um super-herói, já que é capaz de “realizar” seus desejos, aquilo que outrora fora utopia. Para os que ainda guardam, mesmo que seja um pouco, o racionalismo de René Descartes, a Quimera veio para destruir a realidade e o pensar, assim a existência estaria prejudicada. E para o homem como sociedade, o mundo digital é um actante transformador da realidade social que pode destruir a vida ou ser responsável pela continuidade desta no planeta.

Segundo o antropólogo, sociólogo, filósofo francês Edgar Nahoum “o tesouro da humanidade está na sua diversidade criadora, mas a fonte da sua criatividade está na sua unidade geradora”. Observamos que a “humanidade está se desumanizando”, a criação se voltou contra o criador. A internet impede que muitos de seus usuários desenvolvam senso crítico devido à quantidade e à qualidade das informações. A democracia no mundo virtual faz com que o homem possa não apenas ser informado, mas também informar; entretanto, pelos prazeres que as várias semioses podem nos oferecer, muitos podem fugir do racional e ir ao encontro e ou de encontro à irrealidade. Nossa sociedade individualista sofre as consequências, que talvez sejam necessárias – só o futuro dirá – agravadas de forma veemente pela internet, que, por sua velocidade e efemeridade de mensagens verdadeiras ou falsas, torna-se um ser incontrolável, capaz de transformar o homem em criação.

Johannes Gutenberg conseguiu que a sociedade tivesse acesso à informação, porém, séculos depois, esta alcançou a tão sonhada “liberdade” a ponto de virar “desinformação”. Parafraseando Edgar Nahoum, o individualismo e o sociocentrismo, a redução do intelecto humano e a introspecção, o respeito, abertura ao próximo e a tolerância são caminhos que podem afetar positiva e negativamente a compreensão. Temos de aprender com os obstáculos que existem para a compreensão e também ensiná-los, só assim entenderemos melhor a internet, seus efeitos positivos e negativos.

* Contato: www.facebook.com/nelson.letras

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