Passadas três décadas do fim do regime militar, não temos tido êxito em limitar nossas Forças Armadas à sua principal função
Laura Donadelli*
A segurança do Brasil em 2016 já merece um balanço. Enquanto aguardamos a chegada dos Jogos Olímpicos, a crise política avança e as manifestações ganham força, colocando em alerta os órgãos de segurança pública. De um lado, o Exército se prepara para a Defesa do país contra potenciais ameaças externas na ocasião de um evento internacional de grande repercussão midiática. Do outro, os militares são conclamados por parte da população, insatisfeita com a atual situação do país, a (re)ocupar as ruas. Tanto as Olimpíadas quanto as mobilizações políticas e sociais tem reacendido, à sua maneira, o debate acerca do emprego das Forças Armadas no país, o que torna necessária uma breve análise daquilo que já foi notícia neste ano.
No dia 13 de abril, o diretor de Contraterrorismo da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) confirmou a possibilidade de o país ser alvo do Estado Islâmico. Uma mensagem publicada em novembro de 2015 no twitter por um membro do grupo alertou: “Brasil, vocês são nosso próximo alvo”. A preocupação das autoridades e de alguns estudiosos do tema é com a realização das Olimpíadas em agosto, por conta das aglomerações de pessoas e da grande atenção dada pela imprensa internacional ao evento. Em março, o Ministério da Defesa anunciou que a segurança dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos contarão com um efetivo de 38 mil militares, sendo 20 mil na cidade do Rio de Janeiro e 18 mil distribuídos pelas cidades-sedes dos jogos de futebol (Brasília, Belo Horizonte, Manaus, Salvador e São Paulo).
Segundo o ministro da Defesa, Aldo Rebelo, o orçamento destinado à segurança dos jogos é de R$ 704 milhões, utilizados tanto na preparação, desde 2014, quanto na ação direta. Dentre os preparativos, no dia 11 de março o Batalhão de Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear do Exército concluiu um treinamento contra ataques químicos, incluindo o resgate e a descontaminação de vítimas, com a participação de 8 representantes das Forças Armadas dos Estados Unidos. O batalhão atuará em caso de ataque terrorista e, durante os jogos, haverá uma equipe especializada no atendimento a pessoas contaminadas em cada região do Rio. Tradicionalmente creditado como um país pacífico em relação a ameaças externas, a notícia de um suposto ato terrorista causou estranheza e espanto na população. Estaríamos preparados para isso? Estamos treinando adequadamente nosso militares para este tipo de missão?
Apesar da grande repercussão, nos últimos dias, da possibilidade de um ataque do Estado Islâmico durante os Jogos Olímpicos, vale lembrar que ainda neste ano as Forças Armadas brasileiras foram usadas para combater outra ameaça à realização do evento: o Aedes aegypti. A “guerra contra o mosquito” mobilizou, no dia 13 de fevereiro, um mutirão com cerca de 220 mil militares, distribuídos em 356 cidades brasileiras. O contingente, formado por 160 mil homens do Exército, 30 mil da Marinha e outros 30 mil da Aeronáutica, representa 60% do efetivo total das Forças. O objetivo da ação era distribuir panfletos e vistoriar os domicílios, identificando os focos do mosquito transmissor da dengue, zika e chikungunya.
Nas favelas do Rio, apenas agentes municipais de saúde participaram da mobilização, para que os militares não entrassem em confronto com criminosos. Na cidade de São Paulo, a prefeitura informou que a presença do Exército junto aos agentes de saúde minimizou os casos em que os moradores se recusavam a permitir a inspeção à procura de criadouros do mosquito. É sabido que boa parte da população vê as Forças Armadas como uma instituição confiável, perene, obediente e incorruptível. De fato, em se tratando do emprego dos militares, estes têm cumprido as missões secundárias a eles designadas: o uso de mais da metade do efetivo para a distribuição de panfletos é um bom exemplo disso. Apesar das vantagens em questões operacionais e de recursos humanos, manter as Forças Armadas nas ruas pode custar caro para a corporação, ao afastá-la de sua missão primordial; para a sociedade, que permanece em contato com o instrumento de força militar; e para o governo, que abre precedentes para a atuação dos militares na vida pública.
O ministro da Defesa assegurou que a epidemia do mosquito não atrapalhará a realização das Olimpíadas, uma vez que o governo está realizando um grande esforço para seu combate. E parece que o ministro estava certo: nem o mosquito e, pelo menos por enquanto, nem o Estado Islâmico tem tirado tanto o sono de alguns militares brasileiros como a atual situação política do país. No mesmo mês em que a corporação comemora o Dia do Exército (19 de abril), o general da reserva Rômulo Bini Pereira declarou que independente do resultado do processo de impeachment o Brasil atravessará “um período de confrontos que as nossas instituições, provavelmente, não serão capazes de conduzir ou solucionar”, e indicou a declaração do estado de defesa ou de sítio para lidar com a radicalização das posições políticas e ideológicas, que poderiam gerar confrontos físicos entre os grupos favoráveis e contrários ao impeachment.
Anteriormente a esta declaração, Pereira já tinha opinado no periódico O Estado de S. Paulo sobre o emprego das Forças Armadas no Brasil, afirmando que as ações complementares (como a “guerra ao mosquito”) influenciam as missões constitucionais das Forças Armadas, afetando negativamente não apenas o campo externo, de Defesa da pátria, mas também o âmbito interno, “que gradativamente vai se tornando um campo prioritário, como prescreve o artigo 142 da Constituição, como garantidora dos poderes constitucionais da lei e da ordem”. O general foi correto ao afirmar que as ações secundárias afetam negativamente as missões constitucionais das Forças Armadas: este instrumento de Estado é designado para a guerra, e é para esta função que recebe sua doutrina, treinamento e armamento. Entretanto, especular sobre o uso dos militares no âmbito interno, como “garantidoras da lei e da ordem”, apenas nos mostra como pouco avançamos no debate acerca do papel dos militares em nossa democracia.
A manutenção da imagem de uma instituição apolítica talvez tenha suas raízes durante o período da abertura lenta, gradual e segura. Ou posteriormente, com a nossa inabilidade de revisar a anistia aos assassinos e torturadores do regime militar (1964-1985) que, ao contrário do processo argentino, não foram responsabilizados pelos crimes cometidos. Ou ainda em nossas escolas, por dedicarmos tempo equivalente ao ensino da consolidação dos Estados europeus e à recente história de nossa sangrenta ditadura.
De governo em governo e passadas três décadas do fim do regime militar, não temos tido êxito em limitar nossas Forças Armadas à sua principal função, de Defesa nacional. Das periferias das grandes cidades, podemos constatar que os militares não saíram das ruas; não obstante, voltariam hoje mesmo para a política, caso dependêssemos das declarações do general acima citado, da suposta justificativa do voto do deputado e militar da reserva Jair Bolsonaro ou da nostalgia de alguns setores da sociedade. Em 2016, enquanto as sucateadas Forças Armadas foram empregadas na distribuição de panfletos, parte da sociedade se preocupa em colocá-las de volta ao último lugar onde eles deveriam estar.
*Laura Donadelli é pesquisadora do GEDES – Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da Unesp de Franca.