É possível a pax brasiliensis?

Altermundana, essa pax não pode prescindir, contudo, da vida no Planeta Terra, endereço Brasil, data Hoje

André Rehbein Sathler e Valdemir Pires*

O novo governo assume propondo o desafio de pacificação. O discurso inaugural de Michel Temer recorreu à religião como caminho para a religação da sociedade brasileira aos valores fundamentais do País. A pax brasiliensis torna-se o horizonte mítico para uma sociedade regenerada. Altermundana, essa pax não pode prescindir, contudo, da vida no Planeta Terra, endereço Brasil, data Hoje.

Do contrário, soará como promessa divina de Vida Eterna, incapaz de mobilizar as pessoas com a necessária energia para buscarem transformações em suas vidas e, por consequência, na vida em sociedade. A mobilização requer uma adequada avaliação não só da conjuntura socioeconômica e política (desumanizante e desagregadora, neste momento), mas também das tendências estruturais do capitalismo contemporâneo (concentrador, financeirizado e ambientalmente insustentável há tempos).

Medidas que visem a retirar ou diminuir os direitos trabalhistas e produzir recuos nas políticas sociais, que ataquem os avanços no respeito às minorias e às diferenças, que piorem a distribuição de renda funcional e regional no país serão reveladores de absoluta indiferença às condições de vida e sobrevivência dos mais fracos. Sinal de insensibilidade política e, porque não dizer, cristã, já que estamos no plano do religare. O tempo longo necessário aos exploradores de potencialidades tornou-se extravagância diante da urgência presente no cotidiano, marcada pelo fosso entre as promessas de políticos vendedores de ilusões e a realidade da precarização da vida humana, em todas as suas dimensões.

O Estado brasileiro, qualquer que seja a equipe de plantão, não pode pretender ressubmeter a população à obrigação neo-darwiniana de adaptação ao ambiente predatório do laissez faire, laisser passer. O que significa que reformas no Estado não podem ser sinônimo de redução, a qualquer preço, da participação do governo na provisão de bens públicos essenciais. É fato, entretanto, que as políticas públicas precisam deixar de ser o resultado de um diálogo entre cegos e mudos, no qual seus formuladores, os cegos, distantes dos espaços em que elas devem acontecer, desconhecem seus imprevistos e reais necessidades, desconsiderando-os na concepção; enquanto que seus beneficiários, os mudos, conhecem bem as incertezas, mas não encontram canais para se fazerem ouvir, quanto mais interferirem na sua concepção.

Desprovido, em sua cidadania manca, o indivíduo é reduzido a só participar de sua história de forma involuntária e inconsciente. Quais relações de força, quais diferenciações persistem na sociedade, que medeiam a formação do interesse coletivo? Sem clareza quanto a isso, persistirá o problema de saber quais são os objetivos reais das ações governamentais. Qualquer decisão poderá ser questionada, sobretudo se conduzirem à recessão à custa dos trabalhadores e das frações mais pobres da população. Assuntos sociais devem ser resolvidos na esfera da política e as casas legislativas são o palco privilegiado para esse debate – ou deveriam ser.

Nelas, por meio da igualdade entre os parlamentares, que mal ou bem são os representantes escolhidos na forma prevista pelo sistema político brasileiro, será possível identificar os interesses, resolver as contradições, unificar as divergências pela solução política: o reprimido do social encontra liberdade para se manifestar tendo como garantia o superego do mecanismo representacional: a sociedade se liberta da barbárie. Ou pelo menos assim deveria ser.

Do dever ser da representação ao efetivamente ser, vai uma distância no caso do Poder Legislativo brasileiro. Distância que parece ser uma armadilha em que também o Executivo caiu. Em ambos os casos, distância a diminuir, sob risco de se prolongar indefinidamente a relação entre os irremediavelmente cegos e mudos. E não vai diminuir apenas esperando que Deus ouça nossas preces.


André Rehbein Sathler, Economista, Doutor em Filosofia e Coordenador do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.

Valdemir Pires, Economista, professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Unesp.

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