Nós que aqui estamos por vós esperamos

Vivemos momentos marcantes com turbulência e ameaças aos direitos de todos nós.

por Daniel de Carvalho*

Em determinado momento de nossas vidas devemos nos reconhecer como cidadãos e construtores da vida social que nos cerca, atores, principal ou coadjuvantes, e esta análise é essencial para balizarmos nossas decisões e ações. Este ideal se constrói politicamente ao reconhecermos os vários pontos de vista e necessidades que todos temos, e alcançar essa liberdade para nos construir deve ser o principal objetivo das políticas públicas.

Daniel de Carvalho é publicitário

Daniel de Carvalho é publicitário

Tive vários momentos marcantes em minha vida, alguns vem à tona como memórias ou relatos e vários tornam-se relevantes após me debruçar sobre o que acontece ao meu redor. Sempre vem à memória três fatos que se mostraram determinantes para meu crescimento.

O primeiro vem como relato. Era eu uma criança estudante de escola particular tendo aula de português. Não lembro desse momento, não lembro desse fato, reconheço tudo o que aconteceu por confiança e amor aos contadores, meus pais. Em determinada tarefa o dever de casa seria escrever uma redação. Feito o dever de casa, volto eu no outro dia com um poema. Muito bonito, bem construído, bela linguagem, talvez, isso não importa e também não é importante para este relato político. Tomada a atitude como abuso, a professora me deu Zero. Tudo normal não fosse a conversa que tenho todos os dias com meus pais no almoço. Meu pai não aceitou, não pôde aceitar que um poema não era uma redação. Descrição, narração, dissertação, nada disso me fora explicado. Foi à escola, defendeu seu filho na liberdade de escrever um poema pois a pedagoga não havia direcionado corretamente a tarefa. Um momento marcante de minha infância que hoje não me deixo esquecer, de contestação, debate e crescimento.

Outro fato aconteceu quando comecei a estudar publicidade em São Paulo. Muitas vezes ficava o dia todo na faculdade e voltava para casa no percurso de uma hora e meia somente à noite. Almoçava no ‘bandeijão’ da faculdade, a R$ 0,80 o prato individual, se não me engano, em 2001. Bicho que era, estava apaixonado pelo que estava acontecendo em minha vida, até o primeiro almoço na faculdade quando vi a necessidade de me reconhecer como ator político. Na primeira refeição vi um estudante que conheci na fila e fiz amizade, conversamos. Reparei que ele levava 3 pratos consigo na fila. Andamos, conversamos, ele como aluno de Letras, eu de Publicidade, ele veterano e eu calouro. Serviu-se um prato com os dois guardados embaixo e seguiu caminho. Ao sentarmos ele dividiu seu prato com outros dois estudantes que o aguardavam fora da fila e todos almoçamos. Todo dia a cena se repetia com vários outros atores, estudantes ou trabalhadores, que ou dividiam a refeição para economizar ou, moradores do CRUSP – moradia gratuita para apoiar o estudo – guardavam o almoço para jantar e economizar outros R$ 0,80.

Tendo contato com essa realidade, eu, estudante de publicidade com todo apoio que minha família poderia oferecer estudando em uma faculdade pública e estagiando, mudou minha visão como um alquimista transformando tudo em ouro. Foi doído reconhecer esse cenário ao qual nunca havia atentado, mesmo com várias viagens e convivências com o assistencialismo da classe média, e não poderia mais me contentar em comemorar que estava economizando em meu almoço, não conseguiria nunca mais. Passei grandes momentos no CRUSP e na USP, inesquecíveis e libertadores. Hoje ele é professor, um grande e nobre professor que a vida distanciou de minha caminhada mas tenho prazer demais de seguir seus passos pela rede social e cada pegada sua ainda me marca profundamente. A inveja branca destes amigos me alimenta todo dia.

Outro fato marcante, e único ainda insuperável pela perplexidade de sua existência diária na opinião pública, nasceu das passeatas de 2013. Vários foram às ruas pelo direito ao transporte em SP, o Movimento Passe Livre conquistava visibilidade e atenção da mídia para o problema de mobilidade urbana causado pelo alto custo das passagens coletivas e a falta de debate sobre os benefícios que um transporte gratuito de qualidade trariam à população. A semana estava turbulenta e eu atendendo a compromisso em Jaú, não poderia ir. De repente o jogo virou. Seguiu-se uma mobilização contra a corrupção encabeçada por corruptos, o MPL abandonou as ruas agora tomadas pelas propostas conservadoras que se seguiram presentes na TV por 2014 e, páh, mesmo com toda batalha midiática e política a proposta de Dilma Rousseff venceu as eleições naquele ano. O universo ficou incontrolável. Vários culpavam os nordestinos, xingavam a presidenta eleita e assim ensinavam os próximos a fazê-lo. Um destes manifestos me incomodou demais, um político-médico, líder partidário tucano em quem votei muito quando adolescente – acreditava que sendo de Botucatu o representante em Brasília, teria orgulho… Foi deputado estadual e culpou em rede social os nordestinos pela derrota PSDBista pois não teriam cultura política e não saberiam votar.

Ignorou o que seria política, a construção individual dos projetos sociais, e relativizou o poder democrático do voto em uma onda de ódio e raiva alimentada pela derrota. Não consegui ignorá-lo, o que costumo fazer a intolerantes, e respondi como antigo eleitor que o possibilitou que alcançasse a visibilidade que possui hoje. Lição: nunca mais votarei em qualquer partido que tolere estes discursos.

Vivemos momentos marcantes com turbulência e ameaças aos direitos de todos nós. Todos devemos ser incentivados a nos explorar e nos representar, entender e lutar por nossos objetivos e defender o justo e o correto. A democracia se constrói ao garantirmos que todos tenhamos acesso a nossos direitos, acesso à ciência e ao debate, e reflexão consciente para que todos defendamos o justo e os direitos do próximo, que também são nossos, e nenhum ato que persiga, pré-julgue ou dissemine intolerância pelo terrorismo ideológico deve ser tolerado. Precisamos separar os motivos da interrupção do governo eleito em 2014 das ambições deste governo provisório eleito indiretamente em 2016 que traz à tona propostas ultracontroladoras e abusivas que já foram recusadas nas últimas quatro eleições federais pois a ultradireita apresenta ‘grandes gestores e estadistas’ que, concentrando poder em si alimentado pela redução de direitos sociais, busca equilíbrio econômico ignorando as necessidades individuais. Não podemos aceitar que se dê qualquer passo atrás no acesso à dignidade para todos. Fora Temer. Fora ultra-direita, golpistas de todo dia. Seguiremos juntos, todos, ninguém fica para trás.

(‘Nós que aqui estamos por vós esperamos’ é um letreiro disposto no cemitério de Paraibuna, interior de São Paulo, nome de filme documentário homônimo que relata entre cortes e montagens a banalização da vida e da morte na reconstrução de uma perspectiva do século XX.)

*Daniel de Carvalho é publicitário e Secretário de Comunicação do PSOL Botucatu.

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