Professor da Unesp é o primeiro cego a tornar-se livre-docente no País

Eder Pires de Camargo é natural de Lençóis Paulista e leciona Física para cursos de Engenharia

por Viviane Gomes – Diário Oficial de SP

Natural de Lençóis Paulista (54 Km de Botucatu), Eder Pires de Camargo, 43 anos, é o primeiro professor com deficiência visual do Brasil a receber o título de livre-docência. Ao conquistar o segundo degrau mais elevado da carreira acadêmica em Física (o primeiro é professor titular) pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Ilha Solteira, ele ressalta a superação das dificuldades de acessibilidade.

Camargo começou a perder a visão aos 9 anos de idade, quando teve problemas na retina. “Restou-me pouca visão lateral periférica, que me auxilia na locomoção noturna, pois percebo detalhes como, por exemplo, o meio-fio da calçada”, informa. Ele diz que desde a graduação em Física, iniciada em 1992, na Unesp Bauru, “lia as fontes de pesquisa com os ouvidos”. “Devido à falta de publicações acessíveis, no começo minha família e amigos próximos liam os textos científicos para mim. Minha mãe e minha irmã eram meus olhos e mãos, pois também transcreviam entrevistas e as digitavam”, relembra o professor do Departamento de Física e Química da Unesp Ilha Solteira e de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências da Unesp Bauru.

Paixão – O professor concluiu a licenciatura em Física em 1995. Sua paixão pela educação foi o empurrão para aprofundar conhecimentos no mestrado (na Unesp Bauru), doutorado (Unicamp) e pós-doutorado (Unesp Bauru) na mesma área. Nos últimos dez anos, ele estudou alternativas de ensino de Física para pessoas com e sem deficiência visual, que culminaram na conclusão de sua tese de livre-docência pela Unesp Ilha Solteira, apresentada a uma banca de examinadores nos dias 10 e 11 de maio. Com 492 páginas, seu trabalho tomou por base referências bibliográficas de cerca de 40 publicações.

Desde o ano 2000, ele utiliza o programa de computador Virtual Vision, que escaneia livros que ganham voz. “Uma das dificuldades é que o aplicativo não reconhece equações, gráficos nem figuras, bastante empregados no mundo da Física”, lamenta Camargo. “Por causa dos inúmeros erros do sistema na hora de converter imagens para voz, pedia aos meus familiares que interpretassem as figuras contidas nas publicações. Eu as decifrava e fazia minha própria análise dos comentários dos parentes.”

Maquetes – A sua tese de livre-docência teve a colaboração de seus alunos da Unesp, que o ajudaram na produção de maquetes, também usadas em sala de aula para explicar os conceitos da Física.

eder pires de camargo - professor unesp 07Na sua opinião, deve-se ampliar investimentos no acesso à informação para os cegos lerem livros em braile. “Os materiais científicos acessíveis são muito importantes”, atesta. “Meu esforço nas pesquisas foi bem superior ao de uma pessoa que enxerga. Transformei o mundo para chegar a esse resultado. Não estou reclamando, mas não foi fácil”, afirma.

Camargo se locomove com auxílio de bengala. Mora, sozinho, no município de Ilha Solteira e tem autonomia nas atividades cotidianas: vai ao supermercado, ao banco pagar contas, arruma a casa e não depende de ninguém para viagens de lazer, dentro e fora do País. Foi atleta dos 12 aos 18 anos. “Nunca tive medo de enfrentar o mundo”, assegura o professor que também gosta de tocar violão.

Na sala de aula, seu ensino é dinâmico. Usa recursos como computador com voz e maquetes.  Apesar de não ver quase nada, consegue escrever no quadro-negro, pois foi alfabetizado na infância. Ele afirma priorizar trabalhos em grupos e debates, pois acredita que a “metodologia ativa facilita a aprendizagem”.

Mudança de rumo – “A sala de aula para mim sempre foi uma terapia; deixo meus problemas lá fora e me envolvo nas discussões. O argumento do aluno deve ser ouvido e respeitado, pois o processo de aprendizagem se dá por convencimento e não por imposição. A dialética é a porta central dos debates”, afirma.

Ele diz que, em suas classes, não há alunos indisciplinados. O educador publicou cinco livros. O sexto (ainda sem data de lançamento prevista) é Inclusão e necessidade educacional especial: Compreendendo identidade e diferença por meio do ensino da física e da deficiência visual, que receberá recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para impressão de 250 exemplares. A expectativa do autor é distribuí-los entre licenciandos de Física de universidades públicas paulistas e professores da rede de ensino pública estadual.

Sua coragem de enfrentar o mundo foi estimulada em 1988, quando Camargo ainda cursava o primeiro ano do ensino médio, na Escola Estadual Virgilio Capoani, em Lençóis Paulista. “Eu era um rapaz cabisbaixo e quieto. O professor Edevar Moretto me ensinou matemática e disse que eu tinha potencial. Nesse momento, decidi me tornar professor de Física. Esse incentivo modificou meus rumos profissionais”, finaliza.

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