O fracasso do futebol-arte brasileiro

A partida de futebol contagia multidões e possui a virtude de nos aplicar injeções de “droga” leve e inofensiva que nos ajudam a descomplicar a vida

Sérgio Mauro*

Não creio que o recente fracasso da seleção canarinho tenha uma relação direta com a atual crise político-econômica brasileira. A última grande e expressiva vitória de uma seleção brasileira em competições internacionais foi em 1970, quando o presidente-ditador Emílio Médici afirmou que o país ia bem, mas a economia ia mal. As de 1994 e de 2002 foram bastante “mornas” e já expressavam a decadência do chamado “futebol-arte”. É claro que a ditadura brasileira, em 1970, como todos os sistemas políticos totalitaristas, incentivava bastante o futebol, até mesmo como instrumento de propaganda política. Não acho, porém, que a nossa decadência atual, tanto no plano moral como no econômico-social, tenha prejudicado de tal maneira os jogadores de futebol brasileiros que, repentinamente, passaram da condição de artistas da bola para cumpridores burocráticos de estafantes cronogramas futebolísticos.

Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.
Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

O que me incomoda mesmo é o uso inadequado do termo arte no caso em questão. Além de não mais poder ser aplicado a uma seleção que anda colecionando fracassos ou pálidas vitórias, sempre me incomodou essa associação entre um esporte popular e o termo “arte”. É claro que a habilidade de um jogador de futebol ao saber lançar a bola ou fazer um belo gol exige visão, precisão e, sobretudo, força física, mas seria possível comparar a Capella Sistina pintada com os afrescos de Michelangelo ou os versos de Dante ou Shakespeare a um gol de Pelé? Não creio, e vou tentar analisar rapidamente as diferenças.

Pasolini, enfant terrible da cultura italiana nos anos 60 e começo dos 70, intelectual refinado e artista genial (e polêmico), comparou as seleções brasileira e italiana da copa de 1970 e chegou à conclusão de que os brasileiros faziam uma espécie de balé com a bola nos pés (e, portanto, arte), enquanto os italianos apenas utilizavam a força física e procuravam impedir o jogo dos adversários. Embora a seleção brasileira da época fosse indiscutivelmente superior à italiana, permito-me a ousadia de discordar do mestre Pasolini com relação à associação “perigosa” entre a habilidade de Pelé, Tostão, Rivellino e outros com um gênero artístico (no caso, a dança ou o balé). Na verdade, Pasolini, entusiasta do futebol e ele mesmo jogador amador (de “peladas”, para usar a gíria futebolística), deixou-se levar pelo calor do momento e fez uma confusa aproximação. Na minha opinião, a habilidade que um atleta demonstra nos esportes em geral (e não apenas no futebol) assemelha-se quando muito a uma forma de “artesanato”, que requer mais habilidade que talento artístico, mais força física que intuição genial. O suor derramado por Dante ao produzir versos universais que dificilmente serão cancelados da humanidade (enquanto houver leitores e, portanto, enquanto não afundarmos na pior das barbáries, isto é, na desvinculação completa entre o homem e a sua memória depositada nos livros) não é o mesmo que a emoção e o suor de Pelé ao comemorar o milésimo gol. Não há como comparar o talento que Dante empregou para construir as personagens imortais da Divina Comédia aos gols (ainda que belos) de Pelé ou de outros “craques” que a mídia televisiva nos mostra milhares de vezes, todos os anos.

Se entendermos arte como a representação visual, gráfica ou sonora que torna eterno o que para nós é passageiro e, portanto, nos eterniza, como pensava Pirandello, então o futebol não pode ser uma obra de arte. Isto não significa que não possui um papel importante na sociedade, à medida que se insere no âmbito do lúdico, despertando paixões e impulsos vitais de todos os tipos, inclusive os violentos e destrutivos, infelizmente. O futebol, essa espécie de “artesanato” com os pés (e não de arte, no sentido pirandelliano) possui a virtude de arrastar a multidão para duelos que, quase sempre, não são mortais e sublimam o desejo contínuo, irracional e instintivo das massas de construir inimigos, de repudiar o diferente, e que muitas vezes descamba para o conflito. No futebol, porém, ao contrário da verdadeira arte, não há o lúdico associado à problematização da condição humana que, nos grandes artistas, pode levar a reflexões que ajudam a mudar ou, ao menos, a atenuar o inferno cotidiano vivenciado pelos seres humanos.

Como poucos esportes, porém, a partida de futebol contagia multidões e possui a virtude de nos aplicar injeções de “droga” leve e inofensiva que nos ajudam a descomplicar a vida, ainda que por poucas horas. Não se trata, todavia, de uma viagem para o profundo conhecimento de nós mesmos, como só um quadro de um grande pintor, a partitura de um grande compositor ou os versos de um grande poeta podem proporcionar. A viagem proporcionada pelo futebol não é uma “bad trip”, mas não leva ao conhecimento e, portanto, não pode ser chamada de arte.

Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

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