O vestibular e a dissertação argumentativa

Os candidatos ficam tão preocupados em escrever um texto politicamente correto, que acabam produzindo textos sem identidade

por Professor Nelson*

Um receio muito comum que existe entre os jovens, quando elaboram a redação dissertativa no vestibular, é: mas e se o examinador for contra a minha ideia? O conselho que dou a todos vocês que farão essa prova (ou qualquer outra que exija a dissertação argumentativa) é “não se preocupem com a subjetividade daqueles que analisarão os textos; o importante é que vocês produzam uma dissertação com um ponto de vista, os argumentos que o sustentem e a conclusão”.

Professor Nelson é formado pela Unesp de Assis

Professor Nelson é formado pela Unesp de Assis

Os candidatos ficam tão preocupados em escrever um texto politicamente correto (para que o examinador aceite), que acabam produzindo textos sem identidade, sem personalidade, sem senso crítico. E esse “engessamento” prejudica a redação, pois um dos critérios mais importantes avaliados é a capacidade de expressar opiniões que sejam fruto da personalidade de cada um.

É claro que essas opiniões devem ser fundamentadas com argumentos que respeitem os direitos humanos. O examinador deve terminar a leitura com o seguinte pensamento: o texto é bom, claro, coerente, as ideias fazem sentido, estão bem argumentadas. Não importa se ele for contra o que foi colocado no papel. Todos nós temos nossas subjetividades, todavia isso não significa que não possamos aceitar outras ideias. Podemos até não mudarmos de opinião, devido a valores pessoais, religiosos etc., mas podemos entender outras. E é assim que o examinador interpretará o seu texto.

Mas vamos à prática! Na sequência, elaborarei um texto sobre aborto, assunto polêmico. Muitos são contra, outros a favor de sua legalização, descriminação. Peço para que observem que o texto terá uma tese, argumentos e conclusão. Assim deve ser a dissertação argumentativa, evitando subjetividades, trabalhando com a lógica. Farei questão de em algum momento utilizar a primeira pessoa do singular “eu”, para demonstrar que isso não prejudica o texto argumentativo (desde que não se use a emoção, a subjetividade). Diferentemente do que muitas escolas ensinam pelo país, o uso do “eu” não é proibido em dissertações. O texto argumentativo pode ser prejudicado pela emoção; esta deve ser evitada. Este medo de se utilizar o “eu” é mais uma amarra que prejudica o candidato de manifestar seu pensamento. Espero que com este exemplo compreendam melhor a dissertação argumentativa. Agora é com vocês, analisem o texto:

Legalizar, descriminalizar não é abortar

O ser humano possui a característica de, muitas vezes, não visualizar situações sob outras perspectivas que não sejam a de sua primeira interiorização. Como se fosse impedido por uma barreira ideológica invisível, ele se nega a observar, a ver o mundo de acordo com pensamentos que vão de encontro aos seus. Um exemplo dessa falta de visão ocorre no Brasil: sobre a legalização/descriminalização do aborto.
Vivemos em um país, em que a maioria afirma seguir uma religião. Não apenas por uma questão religiosa, mas também moral, grande parte dos brasileiros se declara contra o aborto pelo fato de este ser um “assassinato” ainda antes do nascimento do homem. Todavia o que essa sociedade não consegue compreender é que legalizar o aborto não implica, necessariamente, a interrupção de gravidezes, mas abre a possibilidade de as crianças nascerem e de suas mães não terem problemas devido ao aborto.
Embora eu seja contra o aborto, tenho de compreender que a sua descriminalização será responsável não pela morte, mas sim pela vida, uma vez que a prática abortiva, mesmo sendo proibida, ocorre de qualquer maneira e, da forma que é feita, seja por meios alternativos, seja por clínicas clandestinas, acarreta o não nascimento da criança e, em muitos casos, a morte também da mulher que abortou. Em outros casos, esta fica com sequelas para o resto da vida.
No Brasil, segundo o Conselho Federal de Medicina, o aborto é a quinta causa de mortalidade materna. Comparemos esse dado com o que vem ocorrendo em nosso vizinho Uruguai. No primeiro ano da legalização do aborto, no país, 2013, não houve mortes de mulheres vítimas do procedimento. É fato que o número seria outro, caso elas tivessem abortado em clínicas clandestinas ou houvessem induzido o aborto. Além disso o número de desistências da prática abortiva aumentou em mais de 30%, comparando-se 2014 a 2013.
Estamos diante de uma situação na qual não se trata de ser a favor da prática abortiva, mas sim de uma possibilidade de sequer esta ocorrer. Com a legalização/descriminalização, assim como ocorre no Uruguai, as pacientes passariam por uma comissão formada por um ginecologista, um psicólogo e um assistente social que dariam assessoria sobre os riscos de praticar um aborto e sobre a possibilidade de continuar com a gravidez e dar a criança para adoção. Posteriormente, a paciente teria cinco dias para refletir e depois ratificar sua vontade de praticar ou não o aborto, que seguiria os critérios recomendados pela OMS, Organização Mundial da Saúde.
Liberar, legalizar, descriminalizar não significa incentivar. O muro ideológico que cerca nossas mentes é muito difícil de ser derrubado. O homem possui uma pretensão em não tentar compreender opiniões contrárias, e, muito menos, aceitá-las. Um bom caminho para modificar esse cenário seria uma radical mudança pedagógica nas escolas: permitir que o aluno construa uma personalidade, ao invés de lhe impor uma “identidade” pré-moldada.

*Professor Nelson é formado pela Unesp de Assis

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