Até quando a policia vai continuar matando?

A solução, mais uma vez, está longe dos paliativos propostos por comandantes policiais ou por políticos em busca de votos.

por Sérgio Mauro 

Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

Os vários casos de mortes de adolescentes e crianças perpetrados pelas forças policiais nos últimos dias nos levam necessariamente à pergunta fatal: o Brasil possui uma polícia preparada e consciente dos seus deveres e, sobretudo, dos seus limites? Que me perdoem os muitos policiais honestos e conscientes, mas, no conjunto, com as devidas e honrosas exceções, a manutenção da ordem está nas mãos de profissionais despreparados e mal remunerados.

A raiz do despreparo psicológico e profissional dos policiais brasileiros está certamente na associação mecânica e histórica entre o trabalho braçal e o trabalho indigno e servil, presente na história brasileira desde a época do Império, como atestam os nossos maiores historiadores. Por essa mentalidade, a dignidade do trabalho está associada a sujar ou não sujar as mãos para ganhar o pão cotidiano e, sendo assim, só os profissionais liberais de terno e gravata que façam uso da caneta (e atualmente do smartphone ou do notebook) são dignos de boas condições de trabalho e de polpudos salários.

Recentemente, porém, para agravar tal mentalidade retrógrada, resolveu-se associar também a dignidade ou não do trabalho ao trato direto ou não com as pessoas humildes, pertencentes às classes sociais de baixa renda. Assim, deixam de ser dignas e, portanto, de ser bem remuneradas e com boas condições de trabalho, as profissões em que obrigatoriamente se deva lidar com os desvalidos, com os chamados “párias da sociedade”, com usuários de droga ou problemáticos de todos os tipos. Entre tais profissões “ingratas”, em que se pode ou não sujar as mãos, mas em que necessariamente é preciso ter contato direto com as profundas feridas sociais do país, estão os policiais e os professores da rede pública, especialmente os de nível fundamental ou médio.

Desse modo, quem é que escolhe ser policial no Brasil de hoje? Geralmente, com exceções, os que nada podem mais escolher, não tendo obtido boas notas num sistema escolar conteudístico e retrógrado, incapaz de avaliar e valorizar aptidões que se manifestam de maneiras diferentes, a todos igualando e a todos sujeitando à mesma estrutura burocrática arcaica, verdadeiro baú de desilusões e de frustrações que muitas vezes marcam a ferro e fogo a juventude de milhões de alunos, impedindo-os de encontrar a verdadeira vocação. Com as devidas diferenciações, o mesmo pode-se dizer de quem escolhe o magistério, a tão nobre e decantada profissão, anualmente saudada e reverenciada em cada 15 de outubro, mas que na verdade é escolhida, salvo exceções, por quem não consegue ultrapassar a barreira dos dificílimos vestibulares dos cursos que formam os possíveis futuros profissionais endinheirados, como os engenheiros, médicos, administradores de empresas, etc.

Considerando-se as situações descritas anteriormente, não é de se surpreender que os policiais, despreparados psicologicamente, sujeitos a mil pressões e cobranças, literalmente descarreguem a raiva nos que caem á margem da sociedade por razões infinitas, mas quase sempre ligadas à desestruturação das famílias, à disseminação das drogas e à péssima distribuição de renda, fatores que criam tensões constantes entre os que nada têm e os que têm muito, entre os que precisam escapar e os que possuem amparo e consolo.

A solução, mais uma vez, está longe dos paliativos propostos por comandantes policiais ou por políticos em busca de votos. Não há necessidade de mais policiais nas ruas, com armas tão ou mais poderosas que a dos bandidos, ou com carros iguais aos do batman. Seria preciso impedir que o sistema de ensino continue a selecionar de modo equivocado as diversas aptidões e as variadas formas de inteligência e de raciocínio das crianças e adolescentes que frequentam as nossas escolas, revalorizando cada profissão, independentemente da “sujeira” ou não a que eventualmente as mãos dos profissionais serão expostas, independentemente também dos ganhos e lucros que serão obtidos futuramente. Quando os policiais (e os professores do ensino médio e fundamental) não mais forem os que escolheram tais profissões por não enxergarem no horizonte outra perspectiva melhor, aí então teremos tanto uma força policial consciente e preparada como uma escola séria e eficaz, com profissionais conscientes da importância fundamental do seu trabalho para a sociedade.

* Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

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