Muitos cristãos não compreendem que nem tudo que está na Bíblia pode ser considerado Palavra de Deus
por Padre Beto*
Quando estava no final do meu doutorado na Alemanha fui transferido para um lugar tranquilo para finalizar minha tese. Era um convento de freiras, todas idosas e aposentadas. Fui recebido com imensa alegria como capelão do convento. O entusiasmo das freiras tinha motivo: as irmãs tinham dificuldade de encontrar um padre (um homem) para celebrar a eucaristia. Muitas não podiam mais se locomover para a igreja mais próxima, portanto ficavam à procura de um padre que viesse até o convento.
Confesso que tive vergonha na primeira missa que celebrei no convento de Santa Clara, em Freising. Eu, um inexperiente padre e um homem de 33 anos, estava diante de mulheres bem formadas em teologia, mulheres mais velhas, que haviam enfrentado a primeira e a segunda Grande Guerra, a invasão russa no leste, e tantas outras experiências; eu estava diante de mulheres com uma espiritualidade profunda, mas que não podiam subir ao altar e celebrar a missa. Eu era o homem que possibilitava o acesso à eucaristia para aquelas mulheres.
Diante do exemplo, fica fácil perceber a relação entre o Cristianismo e os casos de violência contra a mulher. Muitos poderiam pensar que as religiões cristãs contribuem para a humanização do relacionamento entre homens e mulheres. Eu gostaria de alertar o leitor e a leitora que infelizmente o Cristianismo é um dos fatores que ajudam a solidificar o machismo na sociedade.
É preciso refletir com urgência sobre este assunto, pois a religião tem uma fortíssima influência na sociedade brasileira em diversas dimensões da vida.
Muito tempo depois, no Brasil, me assustei com o discurso de um pastor evangélico quando juntos celebramos um casamento ecumênico. A fala do pastor foi única e exclusivamente destinada ao noivo. O casamento era do noivo, que estava recebendo sua mulher, uma mulher que deveria ser submissa a seu marido.
Tive muitas oportunidades para refletir sobre os casamentos, pois mesmo a própria celebração do casamento em si mostra o machismo que vai minando a mentalidade das pessoas. A mulher entra na igreja conduzida pelo pai (um homem) que ao chegar ao altar, entrega-a a outro homem (o noivo).
Seja do lado católico seja do protestante ou evangélico, a mensagem que se passa, de forma clara ou subliminar, é que a mulher é segunda raça e deve ser vista como uma personagem que tem seu protagonismo somente na maternidade.
Isso acontece porque os cristãos seguem mais a Paulo do que a Jesus Cristo. O machismo presente no cristianismo é o mesmo presente no discurso de Paulo.
O apóstolo que ajudou a expandir o Cristianismo afirma com toda a clareza: “Quero, porém, que saibais que a cabeça de todo homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem e a cabeça de Cristo é Deus” (Cor. 11, 3). E sobre a presença da mulher na assembleia que seria a missa ou o culto nos dias de hoje determina que “toda a mulher que ore ou profetize com a cabeça descoberta desonra a sua cabeça, é o mesmo que ter a cabeça raspada. Se a mulher não se cobre com véu, mande cortar os cabelos! Mas, se é vergonhoso para uma mulher ter os cabelos cortados ou raspados, cubra a cabeça!” (Cor. 11, 5-6).
Certamente, Paulo tem uma ótima fundamentação para o seu machismo: o argumento de que a mulher foi criada a partir da costela de Adão. Por isso para ele “o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem. Sendo assim, a mulher deve trazer sobre sua cabeça o sinal de sua dependência, por causa dos anjos” (Cor. 11, 8-11).
Muitos cristãos não compreendem que nem tudo que está na Bíblia pode ser considerado Palavra de Deus, ou seja, Palavra de vida. Para a infelicidade da mulher, os cristãos tem que ouvir Paulo dizendo que “Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso (…) Durante a instrução que a mulher conserve-se o silêncio, com toda a submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade.” (1Tm. 2, 9-15).
Eu não quero comparar Paulo a alguns políticos evangélicos famosos, pois Paulo tinha, apesar do machismo, uma cultura e formação melhores. Mas, estes políticos somente sabem reproduzir o machismo paulino e contribuir para uma sociedade menos humana.
Bom seria se os cristãos seguissem o exemplo de Cristo. Se estudarmos a situação da mulher em uma sociedade judaica de dois mil anos atrás, e lermos com o diálogo entre Jesus e a samaritana no poço de Jacó só podemos chegar à conclusão de que Jesus estava muito além de nossa própria época. Lembremos do tratamento que Jesus tem com Marta e Maria e não vamos nos esquecer que a primeira pessoa a ver o ressuscitado foi uma mulher, Maria Madalena.
Só não podemos chamar Jesus de feminista porque os evangelhos nos mostram muito pouco sobre Jesus. Mas podemos dizer que a condição da mulher seria totalmente outra se a religião cristã se centrasse somente em Jesus Cristo. Jesus foi arrojado a dizer em sua época que Deus é pai (a tradução correta seria paizinho ou papai, de qualquer forma, a expressão que uma criança utilizaria na intimidade com seu pai).
Hoje, com certeza, Jesus daria outra visão de Deus. Um Papa que infelizmente morreu muito cedo, João Paulo I, afirmou que “Deus é mãe”. Acredito que seria a hora de dizer que Deus é mulher, negra, pobre e lésbica. Assim, quem sabe, os homens começariam a compreender que todos nós, homens e mulheres, somos filhos e filhas de Deus e que merecemos os mesmos salários, o mesmo respeito, a mesma condição.
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