O falso Robin Hood e a privatização do ensino superior

A iniciativa privada já existe no ensino superior brasileiro e não funciona e, salvo algumas raríssimas exceções, a maioria respira por aparelhos estatais.

Leonardo Dallacqua de Carvalho*

Se não bastasse as propostas alienantes do Escola Sem Partido, mais um ovo da ditadura surge para ser chocado: a privatização do ensino superior. Me refiro ao último domingo, quando um editorial circulou que precisávamos mudar o sistema de ensino público e gratuito, optando pelo ensino pago, pois o gratuito seria injusto com a população pobre. Sempre suspeitei que a nossa elite fosse bondosa no seu âmago, preocupada com as injustiças sociais da sociedade, mas confesso que esse gesto me surpreendeu. Nossa elite não cansa de demonstrar sua benevolência histórica, seja libertando escravos, nos salvando de governos comunistas, ou nos incentivando ao trabalho, dobrando nossa carga horária. Tudo para o nosso próprio bem.

Um dos argumentos vinculados consiste em que o pobre, educado em um ensino básico sucateado, é incapaz de alçar as principais vagas no vestibular, uma vez que os mais ricos e com educação privada arrematam tais lugares. Embora cursos de grande concorrência e apelo como medicina e direito concentrem um público de alta renda, advindo das melhores escolas e cursinhos preparatórios, generalizar para o todo é errado. Uma rápida observada nos gráficos do IBGE entre 2004-2014 mostra que o acesso aumentou vertiginosamente para a inclusão de pobres e negros nas universidades públicas. Graças, em grande medida, ao sistema de cotas sociais e raciais e expansão das vagas.

A solução supõe-se, então, seria uma assistência pesada no ensino básico, médio e fundamental. Mas invertem maldosamente o processo. A culpa estaria no ensino público superior gratuito e não no básico sucateado. A desigualdade social nos assentos do ensino superior não depende de privatização, mas de uma nova metodologia de divisão das vagas levando em conta parâmetros de desigualdade social e racial.

Qual a saída proposta para a “gritante injustiça social”? A privatização. A solução seria abolir o ensino gratuito do ensino superior e transformá-lo em um produto de mercado da iniciativa privada. Quem tem dinheiro paga, quem não tem viveria de supostas “bolsas”. Bolsas? Quais seriam os critérios de contemplação? Financiaria ou reservaria uma quantidade específica de vagas para advindos de escola pública ou de baixa renda? Se for este o caso, as cotas já assumem essa função. Todavia, colocam uma nova roupagem às cotas oferecendo-lhe um ar de “meritocracia”. Nomear essa iniciativa de “Bolsas” parece ser uma estratégia linguística para convencer àquela parcela da população que ostenta um profundo ressentimento e preconceito contra o sistema de cotas. Se a preocupação é essa, não existe a necessidade de privatizar, mas ampliar e melhorar os mecanismos de cotas raciais e sociais vigentes. De forma genérica, recomendam um suposto sistema de bolsas como salvação, substancialmente organizado por empresários da educação.

Aliás, o besteirol chega a tal dosagem que compara o ensino privado brasileiro com a tradição de ensinos estrangeiros, como dos Estados Unidos. Esquecem que no Brasil, retirando as poucas universidades particulares que obtém alto nível na pesquisa e ensino, o sistema não funciona tão “bem” como alegam. Não à toa, foi justamente com o financiamento do Estado, com o FIES, que muitas faculdades particulares de médio e pequeno porte sobreviveram e deixaram de fechar cursos. Deve-se lembrar que a tradição do ensino superior gratuito do Brasil é referência mundial. A iniciativa privada já existe no ensino superior brasileiro e não funciona e, salvo algumas raríssimas exceções, a maioria respira por aparelhos estatais. Em termos qualitativos, a grande procura é pelo ensino superior público e não pelo privado.

O ponto nevrálgico desse discurso está na tentativa de transformar a educação em dinheiro. Fazer da educação um instrumento de enriquecimento. Numa perspectiva ideológica, pega o gancho de propostas como o Escola Sem Partido, que objetiva criar uma horda de alunos-robô, professores burocratizados e obedientes. Estas propostas são instrumentos de vigilância e contribuem para a construção de um cidadão acrítico.

Se o problema for a crise, talvez o combate à sonegação de alguns conglomerados e empresas ajude essa notável e espontânea preocupação com os cofres públicos. Se o problema for a injustiça social, talvez seja o momento de reconhecer os benefícios das cotas raciais e sociais. E sem eufemismos.

Leonardo Dallacqua de Carvalho, graduado e Mestre em História pela Unesp, é atualmente doutorando em História na Fundação Oswaldo Cruz-RJ

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