O atentado na França reacendeu as questões de como identificar terroristas e como prevenir possíveis ataques
Giovanna Ayres Arantes de Paiva*
No ano de 2016, o Estado Islâmico (EI) já reivindicou uma série de ataques terroristas em diferentes regiões do mundo – como no Iraque, Bélgica, Alemanha, EUA. Em recente atentando reivindicado pelo grupo, um caminhão atropelou e matou mais de 80 pessoas em Nice, na França, durante as comemorações pelo Dia da Bastilha, no dia 14 de julho.
Como resposta ao ataque, o presidente francês, François Hollande, estendeu o estado de emergência por três meses. Isso permite ao governo do país proibir reuniões que possam provocar ou manter a desordem, controlar a circulação de pessoas e veículos, e facilita as revistas policiais e a prisão de suspeitos. Ou seja, o estado de emergência permite que as autoridades tenham maior autonomia para fiscalizar e controlar a população francesa. Hollande ainda afirmou que o país tem que demonstrar absoluta vigilância e uma determinação inabalável e que vai reforçar as ações na Síria e no Iraque como forma de combater o EI. Outras autoridades europeias também anunciaram que vão reforçar as fronteiras com a França e seus aparatos de segurança. Nos EUA, o presidente Barack Obama ofereceu ajuda nas investigações do ataque e ressaltou a necessidade de destruir o EI.
Devido à proximidade dos Jogos Olímpicos no Rio e a preocupação de que o país seja palco de ataques terroristas, as repercussões do atentado em Nice afetaram também o Brasil: um dia após o ocorrido, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, declarou que será necessário rever o esquema de segurança e inteligência das Olimpíadas. Jungmann afirmou que “Os acontecimentos em Nice nos preocupam e não poderia ser diferente. Nossa resposta será mais controle e segurança, com ampliação dos procedimentos”. O general Sérgio Etchegoyen, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), reiterou a necessidade de reforçar a segurança no Brasil, declarando que “Temos o dever, a partir do que aconteceu, de checar se há lacunas.”
De fato, o atentado na França reacendeu as questões de como identificar terroristas e como prevenir possíveis ataques. Tais indagações são relevantes e constituem pontos-chave nas estratégias de segurança para prevenir ataques terroristas, evitando-se assim, mais mortes de civis. O objetivo é agir mais rápido que o terrorista e surpreendê-lo, frustrando seu planejamento e abortando o ataque.
Após o atentado do EI à sede do jornal francês Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, o governo da França criou uma página na internet com uma lista de sinais que podem identificar pessoas que estão se tornando jihadistas e que, portanto, poderiam fazer parte de grupos terroristas. A lista inclui características comportamentais como renegar membros da família, mudar hábitos alimentares, não assistir televisão, mudar o vestuário e acessar sites e redes sociais de índole extremista.
A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) tentou traçar os indicativos de um possível terrorista, instruindo a população brasileira a ficar atenta a pessoas que “utilizam roupas, mochilas e bolsas destoantes das circunstâncias e do clima” e que “agem de forma estranha e demonstram intenso nervosismo”. Esses dois fatores que ganharam destaque na publicação da Abin – a roupa e o comportamento – são muito vagos para determinar as ações de uma pessoa e estão fora de contexto. Posteriormente, a Abin divulgou uma nota em que afirma esses fatores isoladamente não constituem indícios de terrorismo, mas que “a combinação de pequenos indícios pode ser evidência de comportamento associado à intenção de prática terrorista” e admitiu que “o trabalho de prevenção é dificultado por não haver descrição, perfil ou comportamento que possa, de forma simples, direta e inequívoca, identificar um terrorista”. A Agência ainda acrescentou que é necessário que se fortaleça no Brasil a ‘cultura de segurança’ a fim de evitar possíveis ataques terroristas. Esse assunto se tornou ainda mais presente no país após a Operação Hashtag, em que a Polícia Federal brasileira prendeu onze suspeitos de planejar um atentado terrorista nas Olimpíadas. De fato, a possibilidade de ações terroristas deve ser levada em consideração no planejamento da segurança dos Jogos Olímpicos, porém é questionável o modo pelo qual essa ‘cultura de segurança’ será implementada, visto que ela poderia legitimar medidas arbitrárias em nome do combate ao terrorismo. Dessa forma, existe a possibilidade de que a ameaça terrorista funcione como um pretexto para articular ações como militarizar cidades, impor prisões com base em evidências frágeis, exacerbar o sentimento de medo na população e, consequentemente, criar a percepção de que existe a necessidade de maior interferência das Forças Armadas e da polícia no meio urbano.
É verdade que o Brasil não tem sido alvo de ataques terroristas e não foi palco de tragédias como as que ocorreram na Europa, EUA e Oriente Médio, portanto, a ameaça de um ataque terrorista não é tão forte no Brasil como é nessas regiões e a população brasileira e seu serviço de inteligência tampouco são acostumados a lidar com ataques desse tipo. Contudo, traçar características vagas de um possível terrorista não ajuda a tornar o país mais seguro, mas sim confunde a população com informações pouco precisas e demasiadamente simplificadas sem dar instruções concretas de como as pessoas deveriam reagir frente a uma ação terrorista, que órgãos de segurança deveriam procurar diante de uma suspeita de terrorismo e que medidas reais já estão sendo tomadas pelas autoridades de inteligência e policias.
Por mais que haja um esforço dos órgãos de segurança de diversos países de alertar a população para as características de uma pessoa que possa cometer um ato terrorista ou que seja ligada ao EI, o fato é que é difícil traçar o perfil de um terrorista e identificá-lo sem recair em estereótipos e preconceitos.
Isso ocorre, primeiramente, porque o ato terrorista pode ser gerado pelos mais diversos tipos de pessoas que possuem motivações distintas. No que concerne particularmente ao EI, o grupo possui uma propaganda forte e ampla capacidade de atrair os mais diversos membros, de diferentes nacionalidades e etnias – não só no Oriente Médio, mas também na Europa. Portanto, a aparência física, a cor da pele e a etnia tampouco são fatores determinantes por si só. A ligação com o islamismo também não determina de forma alguma se uma pessoa é – ou virá a ser – um terrorista. Os membros do EI se auto declaram defensores do islã, mas representantes e praticantes do islamismo condenam as ações do grupo, que não representam os princípios da religião.
Ademais, aqueles que executam os atentados não precisam ter uma grande habilidade para utilizar armas. Como foi visto no atentado em Nice – e, mais recentemente, no atentando na Alemanha que também foi reivindicado pelo grupo – um caminhão e um machado utilizado por um adolescente de 17 anos podem funcionar como armas, alcançando o objetivo desejado: gerar terror.
O aspecto comportamental tampouco pode determinar com precisão quem é o terrorista. O serviço secreto francês, por exemplo, afirmou que não detectou sinais de que o franco-tunisiano Mohamed Lahouaiej-Bouhlel – acusado de ter cometido o atentado em Nice e que já tinha passagem pela política – tivesse se radicalizado. Para obter êxito em um ataque, o terrorista tem que passar despercebido e evitar dar sinais de nervosismo, o que acaba dificultando o reconhecimento de aspectos comportamentais.
Prevenir ataques terroristas é importante, pois pode salvar a vida de muitos civis e frustra possíveis ações do EI ou de lobos solitários associados ao grupo ou não. No entanto, aspectos como cor da pele, etnia, comportamento e religião servem mais para reforçar estereótipos ao associar diretamente atitudes terroristas a pessoas de origem árabe e islâmica do que para combater práticas terroristas. Além disso, os pontos cruciais no combate ao terrorismo não consistem somente em abortar as ações já planejadas pelos terroristas, mas envolvem questões mais profundas como desarticular grupos terroristas, fiscalizar seu financiamento e a venda de armas. Tais fatores relevantes acabam sendo ofuscados pela procura de uma fórmula para identificar terroristas que, na verdade, não existe, pois o processo de identificar e combater ameaças terroristas é complexo e não pode ser guiado pela desinformação e estigmatização de determinados tipos de pessoas.
Giovanna Ayres Arantes de Paiva é pesquisadora de Relações Internacionais do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES/Unesp/Franca.