Sua posição obrigou a UE a fazer-se de fingida e não ver quatro golpes de Estado
por Chico Villela*
Fazemos uma pausa na série ‘O império de mitos’ para abordar dois temas recentes que podem trazer graves e profundas consequências ao equilíbrio geopolítico e estratégico das forças em ação no mundo: o brexit e o golpe no governo turco. Se é que se pode falar em equilíbrio num mundo em guerra permanente desde os inícios do século XX e com dezenas de guerras localizadas. Dois eventos-chave que bagunçam o coreto do império e dos que pretendem mandar, como a União Européia (UE), que na verdade é apenas pau-mandado dos ditames imperiais. Apenas tocaremos no brexit e veremos mais extensamente a Turquia.
O brexit – Um fato é a saída do Reino Unido da UE, o chamado brexit, que poderá demorar muito tempo, de forma que é mais sensato falar em começo da saída As cláusulas que se aplicam preveem extensas conversações, muita conversa fiada, renegociações comerciais, a questão das moedas libra e euro, contribuições financeiras, a complicada questão da permanência do UK na Otan, além da aprovação de todos os países-membros, dados que prometem muita enrolação. Alguns agrupamentos políticos andam falando até mesmo em revogação da votação que deu ganho de causa aos partidários do brexit.
O ex-premiê Cameron parece que foi inspirado pelo patético ex-presidente brasileiro Jânio da Silva Quadros, o mais caricato e ridículo de nossa história, abstraídos os militares como Deodoro e Floriano, dois ditadores de farda, e os recentes ditadores de 21 anos de duração. Jânio ameaçou renúncia imaginando a volta triunfal nos braços do povo, o que lhe daria mais poderes. Deu azar. O Congresso rapidamente aceitou e ‘elegeu’ um tal de Ranieri Mazzilli para a sua vaga então vaga.
Cameron convocou a consulta popular imaginando que ganharia a permanência (remain). Com isso, aumentaria seu já imenso poder de chantagem e barganha sobre os organismos burocráticos e anêmicos da UE. Também deu azar. Tentou enrolar afirmando que continuaria no mando até outubro, data de novas eleições. A alemoa Merkel e o pusilânime francês Hollande deram o berro: Sai já! Deu azar de novo e passou o bastão para a arquiconservadora Tereza May.
Mas o grande derrotado é o império: perdeu seu mais autorizado cavalo-de-tróia nos comitês e organismos da UE, ficou sem a voz e o voto de sua ovelha predileta. O papel do UK sempre foi ir atrás do império arrastando a Otan consigo, como o criminoso de guerra Tony Blair fez no Iraque. O analista Paul Craig Roberts tem uma frase definitiva sobre a razão da existência inútil da Otan: “O principal propósito da Otan hoje é providenciar cobertura para os crimes de Washington”. E a lista não para: Afeganistão, Iraque, Irã, Líbia, Síria, Ucrânia, Yemen, Paquistão, vários países do Oriente Médio e africanos, intervenções na América Latina, e um vasto etc.
A aliança entre Wall Street e a City londrina continua; são os dois mais poderosos agentes do poder financeiro, que é quem manda realmente na pipoca. O brexit deixa uma porta aberta para mais saídas da UE. Um dos candidatos mais prováveis é a Hungria do líder Victor Orban, que tem sido voz de permanente crítica implacável dos ditames e desmandos dos órgãos superiores da EU. Isso vai longe.
Logo após a consulta que desembocou no brexit, Cameron tentou gestos de boas relações com a UE, apesar de tudo. O Reino Unido não aceita a imigração ou a livre circulação, p. ex., mas quer que os profissionais ingleses circulem livremente pelos países-membros. Quer comer o pastel, mas sem pagar. A arrogância secular dos britânicos não conhece limites. Ou, melhor: não conhecia. Eles são uma gracinha.
Turquia – O outro fato é a tentativa fracassada de golpe no governo turco com apoio tácito dos EUA e do seu poodle de luxo, a Otan, e que deverá acarretar transformações de porte entre os poderes, em detrimento do império e da sua acólita UE. Borda-se um novo tapete geopolítico. De início confuso e cheio de falsas informações, aos poucos as notícias sobre o golpe foram clareando. Erdogan, candidato a sultão turco, foi avisado algumas horas antes pela inteligência russa, presente com força no país, e pela iraniana.
O golpe foi uma piada, mal preparado, sem ações claras. O avião que eliminaria Erdogan, de férias numa colônia do Mar Negro, chegou atrasado: ele já havia saído. Faltou unidade; ninguém de alta patente assumiu o comando; o apoio popular era todo de Erdogan; não havia líderes civis; não havia controle dos golpistas sobre a mídia; as tropas eram insuficientes até mesmo para tomar uma ponte vital; não houve coordenação entre os componentes do Deep State, o Estado Profundo turco.
Na sequência, Erdogan desencadeou uma caça às bruxas que já atingiu mais de 70 mil pessoas, demitidas e/ou presas, entre militares, membros do judiciário, professores, religiosos, intelectuais, jornalistas, membros dos serviços de inteligência, etc., em reforço a suas campanhas contra o que vê como inimigos. Erdogan fechou dezenas de escolas, jornais, revistas, estações de rádio e TV, e exigiu, p. ex., a renúncia de todos os reitores de universidades do país. As listas já estavam preparadas antes do golpe, e tudo indica que a precipitação dos golpistas se deveu à necessidade de antecipar-se à espada governamental.
O envolvimento da dupla EUA-Otan ficou indisfarçável. O golpe partiu da gigantesca base militar de Incirlik, logo fechada por Erdogan, que sedia forças aéreas dos EUA-Otan dedicadas a bombardeios regionais, alguns milhares de tropas e a maior coleção de artefatos nucleares estadunidenses da Europa. O que já é um problema: a partir de agora, a Turquia não é mais um ‘aliado’ confiável; aliás, nunca foi. As comunicações dos golpistas foram feitas na rede eletrônica da Otan. Erdogan queixou-se de que país nenhum da aliança ocidental o avisou sobre o andamento do golpe. Ora, sultão…
A equação fundamental – A Turquia ocupa posição ímpar entre Oriente e Ocidente. Foi sede de um império, o otomano, que dominou vastas porções da região até o fim da I Guerra de 1914-18. É o legítimo meio do campo, local onde se decidem muitas partidas de futebol. Suas terras situam-se entre os mares Mediterrâneo, Egeu e Negro e mares como Azov. No Mediterrâneo, convive com países de Europa, Oriente Médio e Norte da África. No Negro, encara o Urso, a Rússia, e poucos países menores.
Sua posição obrigou a UE a fazer-se de fingida e não ver quatro golpes de Estado desde 1970 (proibidos pelos regulamentos da Otan) e muitos atentados às qualidades democráticas, como a liberdade de informação e de práticas políticas. Analistas como Finian Cunningham pensam que a UE vai continuar fingindo que não há nada de anormal nos atentados à ordem democrática. E não se deve esquecer que a UE, leia-se Angela Merkel, fez um acordo sujo com a Turquia e encheu os bolsos de Erdogan com alguns bilhões de euros para que seja contida a onda de refugiados nos seus campos de concentração, digo, seus precários e esfomeados campos de tendas.
Pode-se considerar que o Ocidente suporta a Turquia porque o império precisa, entre outras coisas: de fechar o cerco à Rússia, movimento impensável sem a Turquia; de manter sua política de alianças com forças terroristas como Al Qaeda, Al Nusra e Isis, cujo petróleo roubado era revendido pela família de Erdogan; de continuar a refazer o mapa de poderes do Oriente Médio e suas alianças com os países do Golfo (Arábia Saudita, Qatar e assemelhados, mais o eterno Israel); e mais.
Com a já sabida participação desses aliados golfistas e golpistas, mais a Otan e o incompetente governo BHObama, a Turquia tem vários caminhos: reaproximar-se da Rússia e das forças da Ásia Central; voltar-se para alianças com países do Oriente, destaque para China, Paquistão, Índia, Irã; tornar-se um membro dos Brics e da Organização de Cooperação de Shangai; recompor suas relações com os vizinhos Iraque, Irã e Síria; e salvar a pele de Erdogan antes que a vingança pelo golpe malsucedido desabe sob qualquer forma de agressão, especialidade do império.
Caminhos – De cara, a Turquia pode dar adeus a seus projetos de fazer parte da UE. Erdogan aprendeu afinal que a UE e a Otan são servis ao império e inimigas de seu governo, e que as palavras polidas e bonitas de liberdade, democracia, justiça social, direitos humanos et caterva são apenas engôdos para trouxa calar a boca e apoiar as ações imperiais. Bye, bye, UE; acabou o sonho. Erdogan pretende reintroduzir a pena de morte no país, já que tem muita gente para eliminar, o que o afasta de forma definitiva da UE, cujos estatutos vedam a pena de morte (o império executa presos…).
Putin foi o primeiro estadista a telefonar para Erdogan após o golpe. Putin luta judô e joga xadrez. O jogador de dama BHObama passou alguns dias antes de se manifestar. Putin sabe que Erdogan não tem outra opção senão reorientar seus erros com relação à Síria, afastar-se dos grupos terroristas associados ao império, retomar os projetos de gasodutos que colocavam a Turquia como o grande eixo de distribuição para a UE e garantia para o país rendas e abastecimento, além do poder do mando sobre a energia. Mas os caminhos, se são claros, podem situar na sombra os becos com poucas saídas que ameaçam o futuro da Turquia.
Erdogan tem de ter presente que, a partir de agora, passará a ter a grande mídia contra seu governo e sua pessoa, o que ocorre há cinco anos com Putin. Não sem razão, Paul Craig Roberts chama a imprensa de seu país imperial de presstitute, palavra que dispensa comentários. Lembra A. Huxley, em ‘Ape and Essence’, com o neologismo metrollopis, a prostituta, trollop, encarnada na metrópole.
Beco Curdistão – Os curdos compõem o maior povo do mundo sem Estado: são cerca de 25 a 30 milhões dispersos em territórios unidos em partes do Iraque, Irã, Turquia, Síria e um pouco na Armênia. A Turquia encara os curdos como inimigos, e há pouco mais de um ano voltou (a guerra é antiga) a bombardear suas cidades e acampamentos. Os curdos turcos e sírios combatem terroristas e a Turquia. Os EUA associaram-se aos curdos entre as forças variadas em operação para combater o Isis, sua cria de anos antes para derrubar Assad. Não é tão fácil; a Rússia mantém boas relações com as forças curdas. O que fará Erdogan, não se sabe. Se tiver juízo e for aconselhado por assessor que entenda algo de geopolítica, cessará a guerra contra os curdos e ganhará mais aliados regionais.
Beco alianças em torno da Síria – Com a presença da Rússia ao lado de Assad, consolidou-se uma aliança armada e política entre Rússia, Irã, Iraque, Síria e Hezbollah. A Turquia até um mês atrás opunha-se e combatia a aliança. Os EUA foram definitivamente desmascarados com sua política de fingir que combatem o “terrorismo”. Erdogan agora sente-se livre para acusar o Ocidente de fabricar o terrorismo. A Rússia vai transformar seu aeroporto no território sírio de Khmeimim, localizado a meros 50 km da fronteira sírio-turca, numa grande base militar, com tropas permanentes. O mais poderoso e letal armamento russo vai estar a postos. O que fará Erdogan, não se sabe. Mas neste caso parece não ter nada a fazer.
Beco relações com os países do Golfo & outros – As andanças e andamentos de longos anos das relações entre a Turquia e os petropaíses do Golfo, com a iniciativa conhecida do Qatar e conhecimento e apoio tácito da Arábia Saudita no golpe, situam para Erdogan o enigma de resolver o que fazer com os que queriam derrubá-lo e até mesmo matá-lo. Erdogan deve estar informado sobre as gestões do Qatar, proprietário da decadente rede Al Jazeera, para “limpar” o nome da Al Nusra e desvincular o grupo terrorista saído da Al Qaeda.
A pretensão é de que os EUA tirem o nome da Al Nusra da lista de terroristas, e assim abra-se o caminho para considerar o grupo como “moderado” e financiar mais ainda sua guerra aberta contra Assad. Informação omitida pela big mídia: a Al Nusra é hoje o grupo mais forte de mercenários pagos pelos petrodólares e pelo império e seus associados; mais forte, por exemplo, que o quase falido Isis.
O analista de rara profundidade Gareth Porter noticiou em 19/ 08, as conversações em nível de ministros de relações exteriores entre Irã e Turquia sobre o futuro da Síria. A Turquia impõe uma condição: que a Síria mantenha integral controle sobre seu território e suas etnias, o que sempre fez, aliás. O medo turco vem da criação de um possível Estado curdo na Síria, apoiado pelo império, que iria disparar a criação do Estado curdo turco. A Turquia reconhece seu apoio aos terroristas da Al Nusra e afirma que retira a partir de agora esse apoio.
A UE, a Otan e o império têm agora outra preocupação: a Rússia está decolando seus aviões de bombardeio a posições terroristas na Síria também a partir de território do Irã. Tudo aponta para a constituição de uma base militar russa em território iraniano, o que consterna os psicopatas delirantes do império, além de uso do espaço aéreo iraniano para lançamento de mísseis.
A Rússia vem favorecendo a reaproximação com a Turquia, e Putin tem sido bastante compreensivo no desenrolar do enlace de sanções e proibições. A UE ainda não sabe o que fazer, nem a Otan: o grande jogo ficou agitado e muita turbulência pode acontecer. E agora Erdogan sabe que a Turquia acha-se no papel de uma viúva rica e cobiçada. Os pilotos turcos que derrubaram o avião russo e mataram um dos seus pilotos, o que desencadeou as sanções e proibições, foram presos e acusados de apoiar o golpe. Mais um gesto a favor do reatamento das boas relações com a Rússia.
Beco Projeto do Califado – A razzia que Erdogan está desencadeando sobre os inimigos centra-se numa batalha contra uma instituição que penetrou fundamente na vida política, social e militar da Turquia. Erdogan acusou imediatamente seu arqui-inimigo Fethullah Gulen de autoria do golpe. Mesmo que estivesse interessado, Gulen seria força menor. O jogo foi pesado.
Gulen, que vive na Pennsilvania, sob as asas da CIA, aposta numa Turquia voltada ao Ocidente, bastante secularizada, o que explica sua penetração nas concepções do povo turco, que convive com a secularização desde a grande reforma da terceira década do século XX conduzida por Mustafa Kemal, que, entre outras coisas, situou a religião em seu lugar, longe do poder. A herança da secularização de Kemal, chamado Ataturk, Pai dos Turcos, ficou quase toda nas mãos dos militares, como ele.
A estrutura Gulen é um aglomerado imenso de escolas, mídias, investimentos, adeptos militares, juízes e promotores, professores. Em 2010 ainda estavam juntos, e Gulen apoiou um expurgo de Erdogan que atingiu 300 oficiais secularistas. A partir daí, rompeu com Erdogan e passou a acusar a família de corrupção. Sobre as relações com a Rússia, Gulen obedece ao mando imperial, feito a UE e a Otan: na presença dos agentes do império, abanam o rabo de alegria.
Erdogan vê tudo isso numa ótica muçulmana ortodoxa. Opõe-se até as raízes ao projeto gulenista. Seu ex-premiê Ahmed Davutoglu deixou tudo claro assim que assumiram há poucos anos: Nós queremos fazer renascer o império. Seremos novamente um grande país sunita. O que pode significar o abandono ou a redução dos projetos e medidas de secularização, numa espécie de sharia à la turca. Erdogan imagina-se o novo califa; até mesmo construiu um suntuoso palácio de cerca de 700 milhões de dólares, de onde governa.
A maior cidade da Síria, Aleppo, que tinha 2 milhões de habitantes e era o principal centro econômico do país, quase uma ruína só hoje, faz parte dos planos da entourage de Erdogan, já que fez parte do império otomano. Há outras cidades, como Idlib, sobre as quais se debruçam os olhares erdogânicos. O renascimento do império turco vai exigir muitos territórios na região. Como vai conciliar tudo isso com seus agora parceiros, inevitáveis aliados, com interesses e territórios consolidados, talvez nem Erdogan saiba. Ao menos, não ainda.
Mas o candidato a califa vai ter de penar pra aprender a andar nos becos.
*Chico Villela (72), é escritor e editor, escreve sobre Geopolítica e Política Internacional e atualmente realiza revisão de teses e monografias. Contato pelo e-mail revisao.francisco@gmail.com
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