Reforma Previdente
Quem deve pagar o quê, e o quanto cada um dos brasileiros quer/deve ser generoso com os demais, são questões que devem ser resolvidas
André Rehbein Sathler e Valdemir Pires
No Brasil, a reforma da previdência social é tema permanente há décadas, remontando ao imediato pós-Constituição de 1988. As mudanças até agora obtidas vão do aumento da idade mínima ao estabelecimento de um teto para o valor do benefício, remetendo o interessado em suplantá-lo a sistemas privados de garantia de renda. Nenhuma das minirreformas até agora realizadas resolveu o problema dos alardeados déficits, cuja tendência é de aprofundamento, mormente em cenários de dificuldades de crescimento econômico.
É crucial, nos debates sobre a reforma da previdência, bem como nas decisões tomadas a respeito, ter em mente dois aspectos que costumam ser negligenciados ou insuficientemente levados em conta.
O primeiro desses aspectos é político: a Constituição de 1988 estabeleceu direitos que custam mais do que o contribuinte tem se revelado disposto a pagar, entre eles, alguns que garantem renda mínima vitalícia sem a exigência de contribuição prévia. Por exemplo, a aposentadoria do trabalhador rural e o benefício de um salário mínimo a idosos sem renda nem amparo familiar. Direitos civilizatórios, inegavelmente, mas que não são previdenciários, mas sim assistenciais.
O segundo aspecto é técnico, e tem a ver, exatamente, com a distinção conceitual entre previdência e assistência. A previdência social é um fenômeno econômico e atuarial (intergeracional); consiste em o indivíduo contribuir para um fundo, ao longo da vida laboral, do qual sacará benefícios quando entrar em inatividade. O indivíduo previdente faz, então, uma poupança (forçada, quando a contribuição é tornada obrigatória pelo governo), geralmente ampliada pela contribuição patronal, da qual virá a desfrutar no futuro. A assistência social, por sua vez, é uma prática de solidariedade, que atinge não só os imprevidentes (aqueles que não tiveram o cuidado de assegurar, pelas vias econômicas e atuariais, a renda na velhice ou incapacidade laboral), mas todos os que não conseguiram, por uma razão ou outra, garantir as condições de sobrevivência depois da saída do mercado de trabalho. Não se trata, portanto, do conflito fabular entre a cigarra e a formiga, pois, no mundo real, às vezes a cigarra quer trabalhar, mas não consegue.
Uma vez clara a distinção entre o que é previdência e o que é assistência social, fica claro que a primeira deve ser bancada com a contribuição previdenciária de empresas e trabalhadores ao INSS; enquanto que a assistência social deve ser sustentada com recursos do Tesouro Nacional, vindos de tributos.
O que acontece é que as despesas com assistência devem ser de responsabilidade do conjunto da sociedade, implicando, em determinado grau, se adequadamente pactuada e administrada, na redistribuição de renda; enquanto que a previdência é um assunto privativo de patrões e empregados, não devendo estes – ao menos diretamente – arcar com os custos do amparo aos desvalidos.
Uma reforma previdenciária que seja, ela própria, previdente, deve considerar os dois aspectos aqui discutidos e, além disso, ocorrer paralelamente a uma reforma tributária, que tenha o pendor de obter, de quem mais pode, recursos para bancar a assistência social que, uma vez retirada dos encargos do INSS, o trará, provavelmente, do déficit para o equilíbrio ou superávit.
Quem deve pagar o quê, e o quanto cada um dos brasileiros quer/deve ser generoso com os demais, são questões que devem ser resolvidas no âmbito dos orçamentos públicos como um todo, e não só do orçamento da previdência. Somente assim se poderá discutir o tipo de sociedade desejada e os papéis a serem, nessa sociedade, atribuídos ao governo.
André Rehbein Sathler é Economista, Doutor em Filosofia e Docente do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
Valdemir Pires é Economista, professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras daUnesp de Araraquara.