A Reforma da Previdência

Algo extremamente grave para uma democracia

por André Rehbein-Sathler e Malena Rehbein-Sathler*

Arriscam-se os governantes que se acham onipotentes, acreditando que o contrato social está assinado de uma vez por todas. Estudiosa sobre democracia e participação, Nádia Urbinatti insiste que a manifestação da soberania via representação, na democracia representativa, não é um cheque em branco – tem que ser continuamente repactuada. Portanto está para além do voto (sim, ele continua sendo um importante legitimador, mas hoje está longe de ser suficiente, como claramente tem demonstrado a sociedade). Inserindo o pensamento de Urbinatti na esfera do contratualismo, podemos afirmar que o contrato fundante do Estado precisa ser continuamente renegociado.

Não se concebe mais, sobretudo em tempos de internet e informação amplamente disseminada, uma cidadania afásica e autocomplacente com categorias políticas obsoletas. A satisfação difusa com as instituições, originária da confiança mínima no pacto hobbesiano de não-agressão, pode rapidamente se converter em formas difusas de ressentimento, a envenenar todo o ambiente político. No palco, então, a desorganização da confiança.

Quando é o próprio Estado a romper compromissos, é inexorável o questionamento ao contrato original. O sistema de Previdência Social é um caso clássico e não é por outra razão que a mera sugestão de sua reforma cause tanta reação. A Previdência trouxe ao trabalhador a possibilidade de planejar sua vida no longo prazo, concebendo um tempo de ócio remunerado, no qual teria, minimamente, asseguradas suas condições de sobrevivência. Com base nas regras propostas, sejam elas quais forem, os trabalhadores estruturam suas vidas e suas expectativas, para o tempo longo de toda uma geração, e se movem no presente com base na previsibilidade gerada pelas regras (instituições) quanto ao futuro.

Mais do que ativos financeiros, o cidadão tem ativos emocionais e planejamento de vida investidos na Previdência. Protagoniza sua vida com base no modelo mental configurado pelas instituições e confiante que o Estado as manterá em disciplina. Essa confiança é o colágeno que une todos a todos e cada um ao Leviatã. Se o cidadão não puder confiar neste contrato, por que há de cumprir sua parte?

Propor uma reforma na Previdência que atinge diretamente pessoas que já estão no sistema, por mais que se imaginem criativas regras de transição, é mexer no coração dessa confiança, desestabilizando-a. Algo extremamente grave para uma democracia. Sofisticados argumentos jurídicos estão no debate à tentativa de justificar que não há que se reclamar contra direitos que não seriam, à guisa de contraponto, adquiridos. Tenta-se justificar o rompimento por parte do Estado, sem dar-se conta de que não só este contrato, mas tantos outros, podem simplesmente ser entendidos como nulos pela sociedade. É preciso organizar a confiança.

André Rehbein-Sathler e Malena Rehbein-Sathler são docentes do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Valdemir Pires é docente da Unesp de Araraquara/SP.

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