O que pensa a esquerda na Venezuela?

Embora o chavismo tenha se consolidado como um movimento majoritário, já não é mais possível afirmar que Nicolás Maduro dispõe de capacidade para liderar

por Carolina Silva Pedroso*

Pode soar estranho para a maioria das pessoas no Brasil, mas o chavismo não representa a totalidade da esquerda na Venezuela. Com o surgimento do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), criado por Hugo Chávez Frías em 2007, o então mandatário almejava congregar nesta agremiação partidária toda a esquerda venezuelana. Mesmo aquele momento representando o auge do chavismo, muitos militantes ligados a partidos históricos de esquerda, como o Partido Comunista de Venezuela (PCV) preferiram manter o seu alinhamento ao governo, porém sem mudar de legenda. Embora o chavismo tenha se consolidado como um movimento majoritário, já não é mais possível afirmar que Nicolás Maduro dispõe de capacidade para liderar e aglutinar os setores militantes em torno de sua presidência. As dissidências já vinham sendo observadas desde os últimos anos de Chávez, porém ficaram ainda mais evidentes quando o país passou a ser governado por Maduro. Um dos veículos em que mais se expressa o descontentamento dos setores progressistas do país e, ao mesmo tempo, em que se vislumbra a sua heterogeneidade é o Aporrea, que durante o chavismo se apresentou como um defensor do governo e, com o tempo, foi tornando-se porta-voz de uma visão mais crítica, sem que isso significasse um alinhamento de posições com a oposição “tradicional”, ou seja, com grupos conservadores e de direita. Desta forma, vale a pena analisar o conteúdo publicado neste portal, especialmente nos últimos dias, para que seja possível visualizar o complexo cenário em que a política venezuelana se desenrola.

De maneira geral, a esquerda venezuelana não-madurista, que pode ou não se identificar como chavista, tece duras críticas à Mesa de Unidade Democrática (MUD), principal coalizão partidária da oposição e que detém a maioria dos assentos na Assembleia Nacional. Ou seja, a esquerda ainda vê com simpatia o que Chávez representou e foi capaz de fazer, sobretudo em termos de protagonismo popular e políticas sociais. Contudo, exprime o seu profundo descontentamento com o atual governo em diversas searas, que vão desde uma suposta subserviência ao financismo econômico, arroubos autoritários e até a forma como negocia com a oposição. A melhor forma de compreender esses três elementos é analisar a atual crise econômica, política e institucional sob o prisma destes grupos. A grave situação econômica é apontada por eles como sendo o resultado de dois movimentos simultâneos e complementares. O primeiro deles seria composto pela ineficiência, corrupção e impunidade que vigoram no governo Maduro e que geraram uma inflação estratosférica, o desmantelamento estatal e, consequentemente, o empobrecimento da população. O segundo seria uma “guerra econômica” empreendida pela oposição contra o governo, por meio de boicotes, contrabando e outras ações que só aprofundam as mazelas vividas diariamente pelos venezuelanos. Ambos, em conjunto, representariam para a esquerda o triunfo do financismo, pois mesmo diante de uma grave crise, o governo não deixou de pagar o serviço da dívida, sacrificando o bem-estar de sua população em favor da manutenção do rentismo financeiro, opção política que seria mantida e, provavelmente, aprofundada em um possível governo liderado pela MUD. Um dos defensores desta ideia é Jorge Giordani, ex-ministro da Economia dos governos Chávez e Maduro e um socialista convicto.

Já o autoritarismo (ou neototalitarismo como afirma o intelectual Javier Antonio Vivas Santana) e a postura com a oposição estariam inter-relacionados no estopim da atual crise política e institucional, que foi a anulação do processo de convocação do referendo revogatório, justificado por fraudes nas assinaturas coletadas pela MUD. Um dos argumentos é que a anulação do processo – e, nesse sentido, eles não reforçam a tese governista de que houve fraudes – foi um “suicídio político” de Maduro, alegando que em seu governo subsistiriam correntes de ultradireita e ultraesquerda, que podem ser comparados a nazifascistas e estalinistas no que se refere à manutenção da hegemonia do poder, que seria o seu principal objetivo. Na medida em que o governo impede – ou para os mais indulgentes – dificulta a realização de um referendo revogatório de mandato, em um cenário de provável derrota para Maduro, ficaria assinalado, para essa oposição à esquerda, o desrespeito à Constituição Bolivariana de 1999, que não só prevê esse dispositivo de recall de mandatos, como privilegia a chamada democracia participativa, em contraposição a um modelo meramente representativo. O coletivo “Marea Socialista” (maré socialista) posicionou-se contrário à decisão do Conselho Nacional Eleitoral, por entender que esse órgão realizou uma manobra muito grave contra a Constituição ao impedir a consulta popular por meio do referendo e, desta forma, corroborou a atitude do governo de desrespeito com a Carta Magna. Freddy Elías Eljuri, escritor progressista, também entende que as negociações entre governo e oposição, com mediação internacional de atores como a UNASUL e o Vaticano, são outra forma de furtar a população de participar de decisões que impactarão a sua vida diretamente. Novamente, a esquerda alega que todas as tentativas de “saída” dessa situação grave tentadas até agora não permitem, de fato, que o povo opine ou tenha algum tipo de protagonismo.

Por fim, destaca-se neste cenário a visão de Heinz Deiterich, sociólogo e politólogo alemão que foi um dos assessores de Hugo Chávez e o criador do termo “Socialismo do Século XXI”. Desde o final do chavismo até o início da presidência de Maduro, Deiterich tem se apresentado como mais um crítico dos rumos que a Venezuela tem seguido. Em análise feita à luz dos últimos acontecimentos, ele sentencia que o país caminha de uma ditadura de Maduro para uma ditadura da MUD. Para o intelectual, a partir do momento em que o governo desconheceu a autoridade de um parlamento democraticamente eleito e usou de instrumentos institucionais para impedir a realização do referendo, o regime de governo venezuelano já não poderia mais ser considerado democrático. Por outro lado, ao observar que a alternativa a esse regime seria um governo da MUD, tão autoritário e burguês quanto o anterior, o outro caminho possível para a Venezuela seria mais próximo daquele que está sendo trilhado por Argentina e Brasil, isto é, uma saída neoliberal e impopular. Tal análise sintetiza a situação da esquerda não-madurista na Venezuela: apresenta críticas aos dois principais polos que disputam a hegemonia do poder estatal sem, entretanto, apresentar soluções e agendas concretas para o país. Esse pensamento crítico, até por conta da polarização extremada e maniqueísta, acaba se restringindo aos círculos intelectuais sem possuir apoio popular maciço e, tampouco, consolidar-se como uma “terceira-via”. Eis, portanto, mais um elemento que evidencia a complexa rede político-social venezuelana e que desconstrói qualquer análise superficial sobre o país.

*Carolina Silva Pedroso é Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP), especialista em Venezuela do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da UNESP (IEEI-UNESP) e coordenadora do curso de Relações Internacionais da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação de São Paulo (ESAMC-SP).

Deixe um comentário