Durante a vida, a retórica de Fidel Castro foi marcada por seu forte antagonismo à política intervencionista e imperialista dos Estados Unidos
Alfredo Juan Guevara Martinez*
Os últimos quatro anos tem sido de fortes ventos de mudanças para Cuba. Em 2013, Raúl Castro começou a testar iniciativas de flexibilização em políticas históricas, como a remoção das permissões de viagens para cubanos. No final do ano seguinte veio a histórica retomada das relações diplomáticas. Já em 2015, Obama começou a adotar medidas via ordem executiva para sedimentar uma política de normalização. Agora, em 2016, com uma vitória política predominantemente republicana nos Estados Unidos, o futuro da normalização foi colocado em questão. A eleição de Trump colocava um grande ponto de interrogação quanto ao futuro desses dois países, porém, a morte de Fidel antes da posse do novo governo dos Estados Unidos representa uma janela para um novo futuro.
Especialistas na pauta Cuba têm feito previsões há anos acerca das consequências da morte do líder da Revolução, mas, certamente, a conjuntura atual era inesperada. Para entender o que a morte de Fidel Castro representa para Cuba, é necessário ter em vista o que sua presença física significava no país. A Revolução cubana, embora tenha sido um fenômeno resultante de uma pluralidade de movimentos, com diversos líderes, terminou por ser centralizada na figura de Fidel Castro. É importante considerar que para as instituições de governo em Cuba, a Revolução não foi apenas a derrubada do governo de Batista em 1959, mas se trata de um processo contínuo, que perdura até os dias de hoje. Para efeitos políticos e sociais, Cuba é um país em Revolução. Esse caráter crônico da Revolução foi o que levou à centralização do processo na figura de Fidel Castro. Com a ascensão do movimento revolucionário ao poder, houve uma profunda reorganização na política em Cuba, nas quais o Poder foi detido por Fidel Castro e centralizado nas regras de partido único do Partido Comunista Cubano.
Contudo, a consolidação de Fidel Castro como pilar central da política cubana nas normas formais ficou cada vez mais robusta, conforme as décadas se passaram, e ele conseguiu se manter como cabeça do governo. Castro só saiu do poder de Cuba em 2006, quando se afastou por motivos de saúde, até que em 2008 oficialmente o governo foi transferido para seu irmão, Raúl Castro. Nesse sentido, em uma vida inteira, Fidel Castro nunca “perdeu” o poder, ele apenas o cedeu quando ficou incapacitado fisicamente de exercê-lo. Sua figura continuou a ser tratada em Cuba como líder simbólico e ideológico, sendo que o jornal oficial mantinha uma coluna com suas reflexões.
Durante a vida, a retórica de Fidel Castro foi marcada por seu forte antagonismo à política intervencionista e imperialista dos Estados Unidos. Mesmo com o fim do bloco soviético e final da Guerra Fria, a postura de Castro nunca mudou, e as tensões entre Cuba e a potência vizinha só se intensificaram, levando à transformação do embargo econômico em Lei e à uma severa crise econômica em Cuba, que tem consequências até hoje.
A bem verdade, Fidel Castro sempre foi uma pedra no sapato dos Estados Unidos. Todas as políticas agressivas americanas foram com o intuito de derrubar o seu governo e levar Cuba em direção a um regime mais adequado aos princípios estadunidenses. Na retórica histórica da potência do Norte, o regime cubano é antidemocrático e infringe os direitos humanos, na prática, esse discurso surgiu em um contexto onde os Estados Unidos repudiavam qualquer governo com teor social e que afrontasse seus interesses. As apropriações feitas por Fidel no início de seu governo, e a extensa reforma agrária, acenderam uma luz vermelha no imaginário dos Estados Unidos, que até 2014 se manteve unânime em sua política para Cuba.
A centralidade de Fidel Castro na política de Cuba era tanta, que agora com sua morte, o futuro das relações entre Cuba e os Estados Unidos certamente vai sofrer mudanças. A própria Lei do Embargo econômico tem entre suas cláusulas que uma das condicionais para o bloqueio terminar, seria a não participação de nenhum dos irmãos Castro no governo cubano. Nesse sentido, os políticos americanos mais conservadores perderam um forte argumento para continuar uma política de austeridades com Cuba. Trump não necessariamente causaria um retrocesso na normalização feita por Obama, mas era esperado uma pressão da ala conservadora nesse sentido. Agora a estagnação parece a hipótese mais provável, e a depender de que mudanças ocorram em Cuba, até uma reativação dos diálogos.
Os últimos quatro anos tem sido de fortes ventos de mudanças para Cuba.
Durante mais de meio século, no imaginário popular, a palavra “Cuba” era procedida por “Fidel Castro”, o que de certa forma colocava a sociedade cubana em segundo plano e/ou diretamente subordinada e de acordo com a política “fidelista”. Dessa forma, a morte de Fidel acelera um processo que já estava em trilhos, o de um protagonismo plural maior da sociedade cubana na vida política do país. Apesar de ser irmão de Fidel, Raúl Castro sempre foi visto como mais moderado, e foi sob seu governo que ocorreram as maiores reformas políticas e econômicas em Cuba nas últimas décadas, além disso o mesmo se encontra em seu último mandato.
A história moderna de Cuba tem sido marcada por uma relação paradoxal na qual o passado e o presente se misturam e coexistem ao mesmo tempo, condicionando o futuro. Basta olhar para a paisagem Havana, na qual existe uma cidade dos anos 50 como infraestrutura de uma sociedade de esquerda remanescente da Guerra Fria. A normalização iniciada em 2014 foi o primeiro passo rumo a uma mudança nesse paradigma temporal, e o desaparecimento físico de Fidel tende a marcar mais uma etapa rumo a um desligamento do passado e maior foco no futuro.
Alfredo Juan Guevara Martinez é mestre em Relações Internacionais pela PUC-MG e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP)