OPINIÃO | A catraca livre de Estocolmo

A cultura de qualquer país não tem nada de natural, sempre é socialmente construída ao longo da história

por Valdemar Pereira de Pinho*

Recebi uma postagem relatando que um brasileiro na Suécia notou que no Metrô de Estocolmo havia uma catraca gratuita em meio às várias pagas. Perguntada, a funcionária disse que era para ser usada por quem não tivesse dinheiro para pagar pela passagem, ao que o brasileiro perguntou “E se alguém que tem dinheiro usar essa catraca?” Ao que ela respondeu “Mas, por que ele faria isso?” Na Suíça, em Zurique, vi uma banca de jornais e revistas sem ninguém tomando conta. As pessoas pegam o jornal, colocam o dinheiro na caixinha e fazem o troco honestamente. E ninguém rouba o dinheiro. Como esses países chegaram a isso? O texto da catraca e os comentários concluiram que esse fato se deve a uma “honestidade natural” dos suecos. E que jamais chegaremos a isso no Brasil, “pois todo o povo e os políticos são corruptos”. 

Valdemar Pereira de Pinho é professor aposentado da Unesp e membro do Partido dos Trabalhadores, em Botucatu.

Valdemar Pereira de Pinho é professor aposentado da Unesp e membro do Partido dos Trabalhadores, em Botucatu.

A cultura de qualquer país não tem nada de natural, sempre é socialmente construída ao longo da história. Também o foi na Suécia. Entre os séculos 8 e 11 os vikings, povo da Escandinávia saqueavam quase toda a Europa. Mas, internamente as decisões eram tomadas por consenso em assembléias, as “tings” onde TODOS os cidadãos eram iguais. Desde então a sociedade evoluiu, mas manteve a noção de IGUALDADE como fundamento da organização social e da democracia. Lá ninguém é reverenciado como “senhor”, “doutor” ou “excelência”. Todos são “você”. Os iguais fiscalizam “naturalmente” as instituições e a conduta de todos, inclusive dos políticos e juízes. Em 1766 a Suécia criou a primeira lei de transparência total das instituições públicas. Foi o processo político e social que “naturalizou” o conceito de igualdade e democracia. Como resultado dessa consciência igualitária o Partido Operário Social-Democrata da Suécia, um partido socialista democrático, governou a Suécia por 66 dos 83 anos entre 1932 e 2017, 43 deles seguidos (1932 a 1975), implantando políticas sociais que até hoje garantem vida digna pra TODOS.

Um resultado disso são os salários dos suecos. Os salários menores se aproximaram dos mais altos. A profissão “empregada doméstica” não existe. As 30 principais profissões civis da Suécia englobam a imensa maioria da população. Fazendo conversões para reais, o MENOR SALÁRIO da lista é o de Ajudante de Restaurante que corresponde a 7,5 mil, 8 VEZES O NOSSO SALÁRIO MÍNIMO. O salário médio mais alto é o dos médicos, correspondendo a 21,1 mil. Notem que o maior é só 2,8 vezes o menor. Um Deputado Federal ganha em torno de 9,8 mil, sem nenhuma outra mordomia. Vereador recebe 750 reais mensais de gratificação e 480 reais por sessão a que comparecer. Um juiz federal ganha 16,5 mil e um da Suprema Corte 33 mil (são 17). Sem nenhum dos “benefícios” existentes no Brasil. Na Suécia os impostos são altos, 44,3% do PIB (no Brasil, 35,8%), mas lá não são sobre o consumo. A maioria são impostos diretos sobre patrimônio e IR progressivo. Descontados os impostos o juiz da Suprema Corte ganha o equivalente a R$ 18,2 mil por mês.

Como já disse acima, a cultura é socialmente construída ao longo da história. Na Suécia o valor fundamental dessa construção foi, e ainda é, a igualdade. Já no Brasil, a história mostra que o “valor” fundamental é o individualismo. Esse valor não é natural do cidadão. Foi imposto por uma elite voltada apenas para a obtenção e manutenção de privilégios. Os donos de escravos julgavam que tinham méritos pra manter a maioria da população como escrava. As instituições sempre foram propriedade privada de castas privilegiadas. O uso do dinheiro público, sempre em benefício dos privilegiados, “ensinou” a todos que só a ascensão individual abre as portas para o paraíso dos privilégios, negando direitos à maioria. Da compreensão da catraca livre de Estocolmo podemos aprender como transformar a cultura individualista, num processo social e histórico. Mas, dependendo da leitura, também serve pros privilegiados, e os que almejam chegar lá, justificarem a manutenção cultural da Casa Grande e da Senzala.

*Valdemar Pereira de Pinho é professor aposentado da Unesp e membro do Partido dos Trabalhadores, em Botucatu.

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