As mais variadas formas de preconceito, com destaque para o racismo, estão enraizadas nessa região
por Vladimir Miguel Rodrigues*
Não é novidade a manifestação de atos nazistas nos EUA, principalmente no sul do país. Não se esqueçam, os sulistas pegaram em armas e defenderam o separatismo para manter a escravidão na segunda metade do século 19. A Virgínia, estado onde se encontra Charlottesville, local da exibição da barbárie de dias atrás, tem uma história de horror racial, de Nat Turner, líder negro de uma revolta contra a escravidão no século XIX, até Martin Luther King Jr, o qual deu a vida na luta contra o racismo na década de 1960.
As mais variadas formas de preconceito, com destaque para o racismo, estão enraizadas nessa região. Representam uma narrativa que passa de geração para geração. Esperava-se que os netos não fossem como os avós que esbravejaram ódio contra negros, defendendo as leis Jim Crow, que cercearam direitos civis dos negros até 1964. Entretanto, parece que a “humanidade” não chegou até ali em pleno século XXI. Mandela sempre esteve certo: “ninguém nasce odiando outra pessoa, mas é ensinado” e isso é lei para muitos delinquentes que fizeram aula com a Ku Klux Klan, tão bem representados pelas “famílias de bem cristãs” do “sul profundo” e que não aceitam a igualdade em um pais que, assim como o Brasil, também custou a aceitar a abolição. Se o Estado não tivesse interferido e decretado o fim da escravidão, no Brasil e nos EUA, os bem-aventurados senhores teriam feito por conta própria?
Há grande orgulho para muitos sulistas sobre o que houve na defesa da Secessão (1861-65): são inúmeros símbolos, locais, bandeiras, hinos, “heróis”, como o general racista, Robert Lee, cuja estátua estava sendo retirada de um parque municipal de Charlottesville, dando início à marcha de supremacistas brancos, cujos manifestantes não aceitam que seus ícones sejam retirados: é o “orgulho sulista”. Toda essa simbologia é evocada como uma identidade que, para eles, funda-se no nascimento da nação, “terra da liberdade”. Chamei isso de “mito fundador americano” em meu livro “O X de Malcolm e a questão racial norte-americana” (Editora Unesp) porque, é verdade, os “pais pioneiros” fundaram uma sociedade baseada em uma suposta “liberdade”, mas que valia só para os brancos, já os negros deveriam seguir a “lógica” da inferioridade racial, logo, escravizados. Que país da liberdade é esse que até 1964 excluía, institucionalmente, a população negra? Essa liberdade não passa de um mito se posta às provas históricas!
Esses quasímodos morais travestem o racismo de liberdade de expressão, e tem o apoio do federalismo e da legislação norte-americanos que não punem o comportamento animalesco e permitem que esse tipo de manifestação criminosa seja permitida, apoiando-se na 1ª Emenda da Constituição, a qual defende a “liberdade de expressão”. Não é crime defender bandeiras nazistas em manifestações nos EUA: a KKK funciona normalmente, principalmente no sul, tem uma forte hierarquia, elege políticos e apoiou abertamente o make America great again de Trump, como vimos nas ações de David Duke, ex-Mago Imperial da organização, reconhecidamente um racista de carteirinha, que afirmou após um Trump hesitando em criticar às manifestações, “foi o esmagador voto branco que o colocou na Casa Branca, e ele deveria se lembrar disso”, emendando: “Trump nos empoderou”. Alguém perguntaria sobre a “liberdade” norte-americana: e se for uma passeata em favor do Estado Islâmico o que acontece? E se fossem árabes carregando armas em Charlotesville, como ocorreu na manifestação com supremacistas brancos? E se fosse um motorista árabe que atropelasse manifestantes na cidade? Como eles seriam chamados? Por que o tratamento é diferente? O fator cor da pele ainda pesa na hora de decretar quem é o terrorista? Como os Panteras Negras e Malcolm X foram vistos na década de 1960?
Em uma democracia toda e qualquer manifestação é válida, desde que lute por direitos para todos, não por privilégios, exclusividade que, consequentemente, neste caso, estão em defesa do racismo e da desumanização. Desde Kant, no final do século XVIII, com sua razão prática, temos a ética do dever: “age de tal maneira que tua ação seja exemplo para todos”. A ação racional-moral para Kant insistiria: “só posso defender algo caso eu seja exemplo de minha ação”. Brancos do sul aceitam ser vistos como inferiores? O filósofo francês Edgar Morin está certo, segue o baile dos supremacistas que “caminhamos para o abismo”.
Momentos de crise econômica sempre estimularam o racismo, “o inferno são os outros” destacaria Sartre, e daí os débeis afirmarem a superioridade sobre negros, judeus, indígenas e homossexuais. Em tempos de Trump, “desglobalização” e culpabilização de imigrantes, esse sentimento acéfalo tende a aumentar com os chamados das redes sociais, as quais deram “vozes aos imbecis”, como dissera Umberto Eco. Quantos exemplos históricos são necessários lembrar? Estou com a brilhante Hannah Arendt: se a democracia permitir esse tipo de comportamento, entendido como “liberdade de expressão” é o início de seu próprio fim e poderá estar chocando um novo “ovo da serpente”, referência ao filme do mestre Bergman, que analisava o contexto da emergência do nazismo na Alemanha da década de 1920.
Vladimir Miguel Rodrigues, doutorando em Letras na Unesp de São José do Rio Preto, é professor e escritor, autor de “O X de Malcolm e a questão racial norte-americana” (Editora Unesp) e “Filosofia em Tempos Inquietos” (Chiado Editora”).