OPINIÃO | Tesouros no lixo
Já vi gente descartar todo tipo de coisas, mas não entendo como alguém consegue jogar no lixo livros
por Karina Sant’Anna*
O mês de dezembro é atípico, representa o cansaço de fim de ano, a correria dos preparativos para viajar ou receber a família no Natal. Aos mais supersticiosos significa época de faxina geral. Começa-se então, a separação por objetos, das boas e más memórias. Pensar em tudo aquilo que se pretende levar para o ano novo e o que deve ser descartado. Tal ritual é comum em várias famílias, eu já vi gente descartar todo tipo de coisas, mas não entendo como alguém consegue jogar no lixo, livros.
A penúltima segunda-feira de 2017 começou quente em Botucatu, com temperatura de 24ºC pelas 9 horas da manhã.
Decidida a resolver pagamentos e pequenas tarefas para fechar o ano, saí de casa a pé, o sol estava a pino às 11 horas, foi um passeio curto, nada pode ser resolvido devido à burocracia brasileira. Voltei para casa por um caminho alternativo, gosto de caminhar por lugares não costumeiros, a fim de treinar o meu cérebro. Ao passar na Rua Comendador Pedro Stefannini observei que era dia da coleta de lixo e muitas famílias já tinham posto para fora o seu. No entanto, um deles me chamou atenção – pela primeira vez na vida, eu revirei o lixo de um estranho. Não era qualquer lixo eram tesouros que ninguém mais quis: livros! Havia para todos os gostos, técnicos, espíritas e clássicos, novinhos, praticamente nunca tocados. Parecia bom de mais pra ser verdade! Escolh
i cinco: Carlos Drummond de Andrade: antologia poética; O Tartufo ou o Impostor de Molière; Incidente em Antares de Erico Verissimo; O Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson e Tristão e Isolda, uma adaptação de Helena Gomes.
Ganhei o dia! Ainda estou encantada e perplexa, como alguém pode jogar fora essas fontes de conhecimento? Neste sábado mesmo, recebi a visita de um amigo e durante a conversa mencionei uma saudade dos tempos da escola: as aulas de literatura. Eu sempre amei ler, aprendi com cinco anos pelas histórias em quadrinhos, aos oito ganhei meu primeiro livro: “Era uma vez um segredo”, cujo autor não lembro. A personagem era uma criança que tinha medo de cortar as unhas e o cabelo. Recordo-me que minha mãe conhecedora do meu prazer em ler comprou esse livro na esperança que eu parasse de dar trabalho, pelo meu medo de deixá-la cortar minhas unhas. Na 4º série da escola fui obrigada a fazer uma prova de um livro, li as primeiras crônicas do “Que azar Godofredo” de Alexandre Azevedo.
Mas é o período do ensino médio que lembro com mais carinho, nas aulas de literatura a professora me apresentou ao Cacá (Carlos Drummond de Andrade) ao ultra romântico Álvares de Azevedo, ao José de Alencar… Autores que me faziam suspirar, Machado de Assis, foi meu primeiro relacionamento de amor e ódio, amava Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas odiava Dom Casmurro, oh história difícil de entender! Até hoje eu não sei se Capitu traiu ou não Bentinho. Com tantas lembranças boas, de uma época que eu tinha tempo para ler e sonhar eu sigo feliz com os meus presentes de natal. Em 2018 terei mais cinco para ler. Como devo chamar este episódio inusitado que vivi? Talvez tenha sido apenas sorte de jornalista.
*Karina Sant’Anna é jornalista

