OPINIÃO | 1968 e o legado de Martin Luther King Jr.

Os anos 1960 foram palco de uma luta pela igualdade racial nos Estados Unidos

por Walter de Oliveira Campos*

No emblemático ano de 1968 ocorreram diversos fatos que, ainda que por si sós não tenham desencadeado reviravoltas ou mudanças bruscas no desenvolvimento dos respectivos campos de interação humana, constituíram-se em marcos simbólicos na trajetória das lutas que diversos grupos sociais travavam contra a opressão e a negação do exercício de seus direitos. Dentre tais acontecimentos, um dos que mais insta à reflexão é o assassinato do ativista pelos direitos civis, em especial, pela luta visando à igualdade racial nos Estados Unidos, Martin Luther King Jr. O crime, ocorrido no dia 4 de abril de 1968 em Memphis, estado do Tennesse, um dia após King ter participado de um movimento de apoio à greve dos sanitaristas daquela cidade, foi atribuído a James Earl Ray, que, embora negasse a autoria do crime, foi condenado a noventa e nove anos de prisão, onde morreu em 23 de abril de 1998 aos 70 anos. Quando estava em liberdade, Ray tinha ligações com entidades racistas. O assassinato desencadeou episódios de violência racial em diversas cidades do país.

Os anos 1960 foram palco de uma luta pela igualdade racial nos Estados Unidos que nas duas décadas anteriores chegou às altas instâncias da justiça norte-americana e resultou em decisões que declaravam a inconstitucionalidade de leis discriminatórias. Apesar de tais conquistas, a atuação de Martin Luther King Jr., pautada pela ação pacífica, inspirada em Mahatma Ghandi, foi contestada por parte de diversos militantes negros que pregavam ações violentas, como os Panteras Negras. No Brasil da década de 1960, a militância negra foi enfraquecida pelo regime militar, que a considerava nociva à unidade nacional. Apenas nas décadas de 1970 e 1980 o movimento de defesa dos direitos dos negros brasileiros retomou suas atividades de maneira mais incisiva.

É inegável que nos últimos cinquenta anos as relações inter-raciais tornaram-se menos conflituosas nos Estados Unidos, haja vista, por exemplo, a diminuição de concentrações populacionais de pessoas de cor branca ou de locais habitados exclusivamente por negros. Também o acesso por uma crescente parcela da população negra aos bens e serviços públicos essenciais a uma vida digna e a maior possibilidade de ascensão social dessa população indicam a melhoria da qualidade de vida dos negros norte-americanos. Semelhantemente, no Brasil, onde historicamente se verifica um caldeamento multirracial mais intenso, nas últimas décadas tem ocorrido um desenvolvimento nas condições de vida da população afrodescendente, devido a diversos fatores, dentre os quais podem-se destacar o trabalho de conscientização e valorização da cultura negra por diversas entidades de apoio à causa e também algumas iniciativas de caráter público, como as denominadas ações afirmativas.

Porém, esse quadro, certamente animador em comparação com a situação de cinquenta anos atrás, não deve encobrir uma realidade social ainda muito desfavorável para os negros, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Basta consultar resultados de pesquisas referentes aos mais diversos indicadores sociais, como emprego, salário, saúde e educação, e também daquelas relacionadas à esfera criminal. Lá como aqui, os negros, em comparação com os brancos, enfrentam mais dificuldades de ascensão social e têm um percentual maior entre os desempregados, os que ganham menos e com piores índices de escolaridade, entre outros. No campo da persecução penal, têm uma representação percentual maior dos que os brancos entre os indivíduos submetidos à abordagem policial, entre os condenados e na composição da população carcerária, o que contribui para a perpetuação do estereótipo dos negros como mais propensos à criminalidade.

Mais preocupante ainda é fato de que, não obstante todo o progresso verificado nas últimas décadas com relação aos direitos humanos, não apenas em termo de ações afirmativas públicas e privadas, mas também de conscientização nos níveis acadêmico e cotidiano, ainda persistem ideais racistas e discriminatórios, tanto nos Estados Unidos, cuja história em grande parte foi marcada por uma segregação racial institucional, quanto no Brasil, em que, após a escravidão, as práticas discriminatórias têm sido acobertadas por ideias como as veiculadas pelo mito da democracia racial. Em solo norte-americano constantemente ocorrem violentos episódios de distúrbios raciais, frequentemente ocasionados por atos discriminatórios contra os negros, principalmente em estados do sul do país. No Brasil, embora não ocorram tais episódios, ainda são muitos frequentes os atos de discriminação racial contra os negros, especialmente por meio de manifestações verbais e expressões de ideias preconceituosas em relação a eles.

A lembrança do assassinato de Martin Luther King Jr. deve trazer à memória as dificuldades históricas de lutar contra um pensamento que se opõe ao reconhecimento de que todos os seres humanos são iguais em dignidade e em direitos. Na noite anterior ao seu assassinato, King proferiu um discurso em que parecia profetizar a própria morte, decorrente de sua luta pelos direitos civis. Nesse discurso ele utilizou a metáfora da terra prometida bíblica para se referir a uma sociedade justa que respeitasse os direitos dos cidadãos. Cinquenta anos depois, vemos que para os negros, norte-americanos e brasileiros, e de maneira geral para todos oprimidos, a caminhada à terra prometida ainda é longa, e não se espera que a travessia do rio Jordão seja tão tranquila.

Walter de Oliveira Campos é graduado em Letras e Direito, mestre em Ciência do Direito e doutor pela História pela Unesp de Assis. Contato: walterdeoliveiracampos@gmail.com
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