Os povos africanos foram reduzidos à expressão “negros”, rebaixados a um povo sem História
por Vladimir Miguel Rodrigues
Certa vez, em uma aula de História para o 1º Colegial, com alunos de cerca de 15 anos, um garoto me perguntou se não havia nada de bom para ser ensinado sobre os africanos além de guerras e escravização. Apesar da amostragem ser pequena, de onde viria aquele posicionamento? Uma possível resposta passa pela imagem que se tem da África. Malcolm X, expoente da luta pelos Direitos Civis nos, disse: “A imprensa é tão poderosa que pode fazer um criminoso parecer que ele é a vítima e fazer a vítima parecer que ela é o criminoso”. Vamos estender a frase de Malcolm ao cinema e a televisão, poderosos instrumentos na criação de estereótipos.
Voltemos à sala de aula: é preciso mostrar que a História da África Antiga, na época do desenvolvimento de gregos e romanos, por exemplo, foi sempre de destaque e contato íntimo com os europeus. Sabemos que por volta do século VII a.C., houve profunda influência egípcia sobre os gregos. J. H. Parry, em seu The establishment of the Europpean hegemony afirma que “A lei, a ciência, a filosofia e a religião egípcia influenciaram diretamente a formação da cultura das cidades da Jônia, especialmente em Atenas”. A história de Atlântida, revelada por Platão em seu “Timeu”, teria sido contada por um egípcio a Sólon, em viagem à África. Só uma civilização brilhante como a egípcia, de faraós e cleópatras pretas poderia criar um complexo sistema matemático-engenheiro para erguer as suas famosas pirâmides, sobre as quais até hoje se houve da boca de néscios: “Só pode ser coisa de ET”. Não ouço o mesmo para o Coliseu romano ou o Parthenon ateniense.
Essa é uma pequena amostra da grandiosidade das civilizações africanas, que nos fazem questionar: por que a visão que se tem da História do continente é tão diferente? A mudança ocorreu a partir da Idade Média. As invasões bárbaras do final do século V d.C. tornaram a vida rural, reduzindo a intelectualidade ao controle religioso. O professor norte-americano C. Robinson, em seu Black Marxism, explica: “As antigas civilizações do Mundo Antigo, na Ásia como na África, tornaram-se lendas, preservadas, na maioria das vezes, na obscura narrativa bíblica. Como o conhecimento se tornou cada vez mais preservado em monastérios, visões seculares assumiram um caráter de raridade frente ao compromisso da cristandade em interpretar a História de acordo com as percepções divinas. O etnocentrismo, legitimado pelas autoridades da Igreja, e a ignorância, foram as duas fontes do conhecimento medieval, tornando-se a base do conhecimento do mundo. Por fim, com a evolução da ideologia cristã a um nível global, é suficiente afirmar que a humanidade foi dividida em duas coletividades: o exército da Luz e o das Trevas”.
Logo, os povos africanos foram reduzidos à expressão “negros”, rebaixados a um povo sem História, território, Metafísica, religião e associados ao Mal, como em inúmeras expressões na língua portuguesa. A partir da Bíblia, “fonte da História”, surgiram as justificativas para a escravização dos africanos, como “a maldição de Cam”.
Quase 4 séculos de escravidão na América causaram um impacto terrível na formação das sociedades pós-abolição, não só no sentido de integração, mas também nos obstáculos para afirmação racial devido à destruição psicológica em relação à sua imagem: o cabelo, a pele, o nariz, a boca, a História, a religião… quantos relatos de crianças temos a respeito do racismo nosso de cada dia? Como conseguem desenvolver-se perante uma sociedade que impõe padrões de beleza baseados na branquitude?
É nesse contexto que Pantera Negra insere-se para repensar essa tendência. Wakanda retoma o brilhantismo das civilizações antigas africanas, capaz de criar tecnologias impensáveis para as outras potências. Um elenco composto de personagens negras poderosas: sacerdotisas, guerreiras, cientistas, princesas, todas(os) com suas roupas tradicionais e cabelos naturais como uma demonstração não só de poder, mas de BELEZA! E um detalhe, o poder de T´Challa é fruto de uma “magia negra”, até hoje vista como algo ruim. Que criança ou adolescente negra(o) não se sentirá representado ali? Logo após o lançamento, um vídeo do portal “Quebrando o Tabu” mostrava crianças e adolescentes negras(os) repercutindo o filme e ouvia-se “eu me vejo lá”, “tem um super-herói que se parece comigo”.
Estou certo de que o combate ao racismo tem início na Educação, com o destaque para a História da África e suas riquezas, tão importantes como as da Europa, assim como o desenvolvimento da cultura afro-brasileira e suas manifestações atuais, desconstruindo visões passadas e criando um ambiente propício à diversidade e ao respeito. Passa também pelo reparo histórico de um trauma do nosso passado até agora não resolvido, a escravidão, como medidas afirmativas já efetivadas há anos, como as cotas, e termina nas medidas punitivas às agressões racistas.
Vladimir Miguel Rodrigues é autor de “O X de Malcolm e a questão racial norte-americana”(Ed. Unesp) e doutorando em Letras na Unesp de São José do Rio Preto.