Não precisa ser um especialista em Teoria Literária para compreender a relação entre ficção e realidade
por João Paulo Vani*
Assistir aos acontecimentos políticos em nosso país tem sido, no mínimo, uma atividade inquietante. Todos os dias o cidadão é surpreendido com manchetes que parecem ter saído da cabeça do mais criativo dos redatores. E isso foi publicamente dito pelo perfil social da série americana “House of Cards” em 17 de maio de 2017: “Tá difícil competir”, foi a mensagem postada diante da divulgação da notícia de que Michel Temer tinha sido “grampeado” pelos irmãos Batista, da JBS, cujo áudio poderia comprovar o aval do presidente para a compra do silêncio de Eduardo Cunha.
O teórico alemão Erich Auerbach, ao propor uma releitura da mímese de Aristóteles nos explica que “é verossímil que o inverossímil aconteça”, e esse é o argumento a ser utilizado em eventos surpreendentes, capazes de serem geradores de traumas coletivos ou individuais, como foi o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova York, quando dois aviões comerciais foram, inacreditavelmente, transformados em mísseis ao atingir as torres gêmeas do World Trade Center.
Porém, se voltarmos ao texto de Aristóteles, na obra “Retórica”, veremos que a lógica proposta pelo filósofo é a de que “uma coisa é mais provável quanto maior o número de casos similares”. E é esse o sentimento de nós, brasileiros: é tanta corrupção, tanta falcatrua, que parece que estamos invertendo a lógica e tornando perfeitamente verossímil e factível no Brasil que atos criminosos dignos de produções de Hollywood sejam diariamente mostrados em nossos veículos de imprensa.
E, em um total contrassenso, como se já não fosse ruim o bastante viver uma realidade digna de cinema, temos de ver estampado em todos os portais de notícias uma insinuação da ex mandatária da nação ridiculamente acusando um produtor de séries de TV de propagar fake news! Ora, ora… Devemos então desconsiderar propostas de reflexão advindas da criação artística como “O Mecanismo”, que se fundamenta na liberdade de expressão de seus criadores?
Não precisa ser um especialista em Teoria Literária para compreender a relação entre ficção e realidade, pois o aviso de que obras ficcionais não têm compromisso com a realidade é exibido nos créditos de todos os programas dessa natureza produzidos pela TV Globo, a emissora com maior público em nosso país.
Voltando para a realidade verdadeira daqueles que não vivem em uma bolha, me pergunto: quando será que os políticos brasileiros serão capazes de perceber que a população está começando a perceber a existência das cortinas de fumaça? Quando será que os políticos brasileiros serão capazes de perceber que a tecnologia juntou geolocalização e colaboratividade e está permitindo que aplicativos como Fogo Cruzado revelem para o mundo a verdade nua e crua de um Rio de Janeiro sitiado? Com acompanhamento em tempo real, com ocorrências registradas pelos usuários, o aplicativo apresenta estatísticas de envergonhar os mais experientes roteiristas de Hollywood, incapazes de conceber tamanha violência: da meia noite do dia 1º de janeiro de 2018 até a meia noite do dia de hoje, o aplicativo contabilizou 1995 tiroteios, com 400 mortos e 310 feridos.
Tom Jobim, que tão lindamente cantou um Rio de Janeiro que não existe mais, tinha razão: “O Brasil não é para principiantes”. Se cuida, “House of Cards”.
João Paulo Vani é aluno de doutorado do Programa de Pós-graduação em Letras da Unesp/São José do Rio Preto.