Crônicas abismais do confinamento II- Cozinha & Felicidade

Cozinhar é conversar consigo mesmo e com o alimento

Por Chico Villela*

Cá estou eu, imerso na ausência das pessoas e na presença da solidão.

Assim se iniciava a crônica I – Eternas e etéreas. Não que a condição se tenha alterado, mas o tema II concorre para a redução do estar e sentir-se só: a cozinha é povoada de fantasmas benfazejos. Cozinhar não é arte isolada como pintar e escrever e procurar seres e monstros nas nuvens. Exige atenção e tirocínio já que a cada momento tudo será sempre diferente. Atribui-se a Heráclito que nunca se entra duas vezes no mesmo rio porque a cada vez seremos diferentes do ser anterior e também o rio não será o mesmo. Cozinhar é conversar consigo mesmo e com o alimento. A cozinha é diálogo e rigor.

Esse rigor, que talvez possa ser dedicado à compreensão da vida mais ampla nas comunidades, tem de ter navio de manejo seguro e âncora no rigor pessoal no dia a dia de todo dia da eterna busca que exige todos os rigores. É preciso olhares novos e atentos e pontos de vista que podem surpreender. É como os queijos, em que os miolos são uniformes e saborosos mas as cascas são sempre mais interessantes.

A cozinha abriga conceitos que a aproximam de várias ciências e práticas afins à busca de conhecimento, uma busca aberta e incessante, um desassossego da alma. Em seus territórios as certezas se dissolvem em indagações exigentes de respostas antes que o azeite queime ou os pontos de intervenção se percam e ponham a perder o prato. Assim é que se costuma acreditar que a culinária tem mais a ver com a filosofia do que com as exatidões da física ou da química, e que se situa a trilhões de anos-luz da matemática. E também por isso rolam motes como ‘a filosofia brota do chão da cozinha’ antes que dos livros no escritório.

A cozinha é indissociável da experiência, da mão e do olho. Sem os três, não passa de um livro de receitas de serventia restrita: a sua única finalidade é fornecer a lista de ingredientes. Se livros e receitas resolvessem algo, não seria necessário haver tantos mestres e cozinheiros mundo afora.

A partir daí entra-se num mundo de ficção: use uma xícara disso (sim, o isso entra no prato, mas xícara não é medida), avance com fogo baixo (os fogões costumam ter apenas dois, alto e baixo, invariáveis como as chuvas flutuantes que inspiram aves), mexa até dar o ponto (inexatidão quântica tão vaga quanto os saltos dos elétrons entre órbitas), cubra com água fervente (em panela ou caçarola de qual diâmetro?), cozinhe durante tantos minutos (em barro, pedra, ferro, aço, alumínio, vidro, cobre? Os tempos variam conforme o material), e assim se prossegue com indicações em verdade inúteis. 

Outros aspectos imprecisos podem ser ressaltados, como o dos equipamentos. Basta comparar um fogão a lenha com um a gás. Além do alto e baixo do fogão a gás, o fogão a lenha tem infinitas variações e variedades. O fogo alimentado com madeira tem todas as gradações possíveis. As bocas recebem cargas variáveis de calor conforme sua posição, e podem ser cobertas com tampas que arrefecem mas não eliminam o calor. As trempes têm laterais que alojam partes maiores ou menores das vasilhas. Perante tudo isso resta a tristeza vazia e monótona do fogão a gás caseiro com sua invariabilidade. Chamam a isso progresso.

Outro capítulo da infelicidade da cozinha contemporânea é reservado aos alimentos. A aplicação de processos industriais à sua obtenção é chamada ‘enriquecimento’. Um exemplo é o uso do arroz.

Civilizações foram erguidas e mantidas com base em alimentos principais. Nas da nossa América a base da alimentação era o milho. Hoje pensa-se no maldito milho transgênico, que vem criando tumores cancerígenos e assassinando ratos de laboratório. 

Os incas conheceram cerca de 50 tipos de milho. No Oriente a base da alimentação foram os arrozes, e monumentais civilizações como a chinesa se firmaram com este alimento principal. As do Oriente Médio e adjacências, origem da chamada civilização ocidental, tinham o trigo selvagem que alimentou sumérios, babilônios, egípcios, gregos, hititas, persas e tantos povos de superior cultura e refinada culinária. Hoje o conceito de alimento principal desapareceu do horizonte. Ou então seremos obrigados a considerar o hambúrguer dos gringos no mesmo patamar…

O que o Ocidente industrial fez com o arroz encontra paralelo com o que fez com estas ancestrais civilizações. Um grão de arroz contém várias partes, todas vitais para a saúde. Há um miolo coberto com uma capa e encimado por um ponto amarelado chamado germe. O ‘beneficiamento’ ocidental retira a capa e seus elementos nutritivos e o germe, parte mais rica do grão, e deixa o miolo amidoso e produtor de gases. É o ‘arroz branco’.

Uma cozinha que busque e reforce a felicidade deve orientar-se pelo uso das fontes de saúde. De todos os alimentos que brotam da terra nenhum é tão rico e vital quanto o inhame, diz a ciência. Mas para cada bolota de inhame vendida acha-se ao menos uma tonelada de batata, de valor nutritivo próximo do zero absoluto. 

A cozinha é uma fonte de belezas tanto quanto de saúde. Enquanto as sombras se movem pelas frestas, anunciando os passos das horas do dia, a visão dos objetos de formas variadas nas prateleiras é puro encantamento. As panelas se assentam nas suas formas arredondadas como rotundas senhoras bundudas. Os copos e vidros se exibem sem qualquer pudor. Os talheres maiores se amontoam e os menores são condenados a olhar-se de frente num possível sem-saber-o-que-será. Mas consta que garfinhos costumam se engraçar com colherinhas desenhadas. 

A hierarquia dos pratos replica a das monarquias que insistem em afirmar sua improvável existência entre as modernidades que zombam do seu ridículo. Os rasos julgam-se nobres e superiores aos fundos, desprezíveis e episódicos, que só saem a passear em dias de sopa. Os de sobremesa desapareceram de circulação depois que as guloseimas consumidas irrefletidamente com seus açúcares saem de suas embalagens industriais. E com eles desapareceram também as artes da doçaria caseira com gosto e jeito de avó. Os pirões, pires e pirinhos viam a luz do sol em dias de visitas, extintas no mar de confinamentos que aos poucos inunda o planeta, e assim dormem nos fundos de gavetas escuras e prateleiras inacessíveis. As xícaras perderam sua identidade no mar de jogos e conjuntos homogêneos e espantosamente feios e chatos.

Mas a culinária pessoal e criativa persiste. É mais gratificante escolher com prazer o prato da hora que escrutinar as monotonias prontas dos supermercados. E dedicar-se a prepará-lo com concentração e atenção. Fazer tudo com a mão e recusar aparelhos e ferramentas que alongam a preguiça e conduzem à alienação. Mesmo porque esta é uma crônica do confinamento e seu tempo tateia na procura de atividades que aliviem a alma de seus marasmos. 

Ao picar cebolas, não adote artifícios e derivativos, simplesmente chore. Os dentes de alho não estão prontos sem casca: escondem miolos fibrosos a serem retirados com maestria. Descubra por si quantas partes tem um ovo. Para os leigos, são três: casca, clara e gema; tente descobrir as cinco que faltam. Descubra que o conceito de ponto não se encontra nos livros e tratados, mas nas pupilas dos seus olhos. E pense sempre que a mão é tão importante na cozinha quanto na escrita, dois campos em que foi abandonada.

O abandono da mão na escrita vem levando ao abandono da razão e da clareza do pensamento, como se a história acumulada em sabedorias de milênios tivesse sofrido transformação em msgs de zaps e tuítes. O diálogo que se movia entre idéias articuladas e proposições lógicas astutas deu lugar a afirmações vácuas e recheadas de figurinhas prontas que se apresentam a um toque de teclado. Não se escreve mais: as imagens idiotas expulsaram as palavras; é mais fácil. A escrita, como a prática culinária, deve ser feita a mão.

A cozinha é difícil. É uma faina incessante, um exercício de expressão de um interior rico que se declara em cada gesto, em cada corte de faca afiada, em ingredientes que se preparam de forma cada vez mais elegante e exata, em adição constante de cores e texturas. Cozinha é expressão. É como a ‘arte cavalheiresca do arqueiro zen’: não há possibilidade de exercer a arte apenas com o domínio das técnicas essenciais; a pergunta que se sobrepõe é: quem lança a flecha? Não é só a técnica que na cozinha se aprimora e busca a perfeição; o cozinheiro também tem de ser impecável. 

A vida da casa mora mesmo é na cozinha. Assim como na escola a criança aprende e pratica (ou deveria) a ética, que se incorpora na personalidade só até os começos da adolescência (depois é perda de tempo), na cozinha abrem-se espaços amplos para a harmonia, a beleza, a plenitude, nunca encontradas nos (in)cômodos cantos da casa.

Tenho mente trânsfuga, navego em areia. Sem a cozinha talvez já tivesse me perdido de mim. É na cozinha que se realiza o encontro entre os sentidos, a panela repleta de cores para deleite dos olhares, o chiar e borbulhar da mistura que preenche os ouvidos, os aromas espalhados dos temperos que revivem as ancestrais funções do nariz, as provas de paladar que se tornam tira-gostos para as doses de aguardente a que todos os cozinheiros são alegremente condenados, o acariciar das preparações com as mãos que glorificam o tato, o calor do fogo que contamina a pele e abrasa o rosto, e a sombra do gato que quase não se via tão esperto se fazia.

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O feiticeiro Dom Juan Matus obrigava seus discípulos a tarefas para eles sem sentido como alinhar pedras em círculos concêntricos ao redor da casa. A rígida disciplina de atenção e concentração das escolas zen cumpre a mesma função: parar o discurso interior, eliminar os tijolos lógicos, os elos falsos entre fatos, os ilusórios encadeadores de eventos que apenas se sucedem, sem liames entre si. 

Na casa, é na cozinha que essas práticas tornam-se possíveis. E é também por isso que o aliado mais vital do cozinheiro é o silêncio. A crônica deve render-se ao recato; a novela, ao atrevimento; e o conto tem seu mergulho sutil nos româncios da vida inteira. A palavra escrita é muda; a fala é viva. 

Mas na cozinha não se deve conviver com ambiguidades, ou então nada se resolve. Cozinhar é entregar-se ao fluxo contínuo que move tudo. Com atenção e concentração as decisões surgem facilmente. E os alimentos acumulam saberes e energias desde que guiados por pensamentos unívocos. Ou pelo ansiado vácuo de conceitos que são deixados de lado assim que se acende a primeira chama. A cozinha é a busca eterna da formosura. Com amor, com humor. É o lugar em que você vai, não encontrar, mas, sim, construir a felicidade.

*Chico Villela é escritor e editor, escreve sobre Geopolítica e Política Internacional. Contato pelo e-mail chicovillela@gmail.com

**Os artigos assinados por colunistas não traduzem necessariamente a opinião do Notícias Botucatu.

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