Uma visão não linear de Ciência: reflexões sobre o filme ‘E a vida continua’

“E a Vida Continua” não é um filme que o espectador pode encontrar alento, pois sabe que trata-se mais de realidade do que de ficção

Por Vinícius Nunes Alves*

Confundida com pneunomia e leucemia, os primeiros casos da AIDS – sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – chegam nos Estados Unidos no fim dos anos 70. A doença viral, desconhecida até então, se expandiu nos anos 80 e causou mortes principalmente em homossexuais, ficando conhecida pejorativamente como “epidemia gay” em grandes centros urbanos como São Francisco. O longo processo até a identificação do vírus HIV foi permeado por conflito de interesses entre cientistas, empresários, imprensas e homossexuais. Duas marcas fortes da narrativa são o preconceito da sociedade contra a doença e o desleixo das autoridades americanas frente ao avanço do mal. 

Em linhas gerais, esse é o enredo do filme americano And the band played on [em português: ‘E a vida continua’] lançado em 1993 e dirigido por Roger Spottiswoode. O longa de drama é inspirado na história verídica de um livro best seller de 1987: And the Band Played On: Politics, People, and the AIDS Epidemic, escrito pelo jornalista Randy Shilts.

O protagonista da trama é o personagem Don Francis, um médico e pesquisador do Centro de Controle de Doenças (CDC) de Atlanta que tem o interesse genuíno de descobrir a causa da doença e a forma de contágio. Para isso, mesmo com poucos recursos, Dr. Francis e seus colegas epidemiologistas, como a Dra. Mary Guinan, realizam questionários e coletam material linfático com/de doentes, elaboram hipóteses com base em conhecimentos prévios, testam técnicas laboratoriais e obtêm dados para refutar ou corroborar as hipóteses sobre a natureza do novo vírus. No ambiente de discussão da CDC retratado no filme, uma sequência postulada pelo fisósofo da ciência Thomas Kuhn é representada: convicções com previsões são suscitadas para então serem investigadas com apoio do paradigma vigente, o que pode ou não culminar na solução do novo quebra cabeça. Cada ideia a respeito da doença (patógeno, família, transmissão,…) é questionada quanto ao seu potencial de ser provada ou não. Um dos exemplos do filme que pode-se ver uma busca sistemática de prova é a hipótese da doença também ser transmitida pelo sangue, o que veio a causar resistência das empresas de bancos de sangue que só tomou providência depois da morte de milhares de hemofílicos.

“Para encontrarmos um paciente que a tenha contraído após a transfusão, vamos procurar entre os doadores e ver se algum tem a doença e a passou por transfusão. Se encontrarmos, teremos feito a conexão. É só provar que o paciente só podia tê-la pego assim.” 

personagem Dr. Harold Jaffe (Charles Martin Smith), médico pesquisador da CDC

Isso se aproxima da visão baseada em fatos do Francis Bacon, autor que formalizou o método científico moderno e defendia a experiência escriturada, a qual basicamente consiste em estabelecer um objetivo, observar metodicamente e fazer experimentos para obter resultados, sejam negativos ou positivos. 

Enquanto isso, o personagem Robert Gallo que era famoso por seus trabalhos com retrovírus humano, tem interesse de ganhar os créditos e a patente da descoberta do vírus HIV. Ao longo do filme, Gallo que coordenava um grupo de pesquisa norte-americano com mais recursos, demonstra uma conduta individualista e antiética que acabou se apropriando de uma credibilidade que, na verdade, pertencia ao grupo de pesquisa coordenado por Luc Montagnier, na França. Esse é um exemplo de como o Desinteresse, um dos Imperativos Institucionais da Ciência propostos pelo sociólogo Robert Merton em 1942, é respeitado ou não dependendo do indivíduo que está por trás da condução da pesquisa. Para Merton, o Desinteresse é a busca pelo conhecimento sem esperar recompensa e sem incorrer em fraudes. Assim, pode-se dizer que o norte-americano Dr. Gallo violou esse imperativo por ter patenteado o mesmo vírus do mesmo doente que foi extraído e examinado anteriormente por pesquisadores do Instituto Pasteur. Além disso, como Dr. Gallo também se pronunciou na mídia como sendo o principal autor da descoberta do HIV, ele violou Responsabilidades da Declaração de Singapura sobre integridade em pesquisa, como a Autoria que postula: “[…] A lista de autores deve sempre incluir todos aqueles (mas apenas aqueles) que atendam os critérios de autoria”. 

Gallo: “Quer que [os franceses] fiquem com todo o crédito?”

Don: “Eu falo com eles. Aceitam discutir em particular. Temos de estar unidos. Não pode haver confusão entre cientistas perante o público.”

trecho de diálogo do filme

Outros personagens que merecem destaque são Bill Krauss que é homossexual ativista e luta pelos direitos da comunidade gay e, Selma Dritz do Comitê de Liberação Gay da Câmara dos Vereadores. O lema para ambos é que “Homossexuais também são humanos”. Bill e Selma defendiam os direitos da comunidade gay em geral, inclusive a preservação das conquistas de liberdade sexual. Porém, reconheceram discretamente sobre a alta probabilidade de tratar-se de uma DST (doença sexualmente transmissível) que se disseminava progressivamente entre homossexuais, e que maiores investigações nas saunas precisavam ser feitas. Nesse contexto,  a recomendação de Don Francis e outros cientistas em fechar as saunas para reduzir o contágio dividia a comunidade gay. O filme retrata que em San Francisco a maior parte dos homossexuais resistiu a seguir essa precaução alegando que preferia morrer como humanos do que como bichos presos. Isso se deve às saunas serem símbolos de liberdade sexual conquistada entre gays, e também serem lucrativas para algumas pessoas. 

“Eu ganho quando as pessoas entram e vocês, médicos, ganham quando elas saem.”

personagem Eddie Papasano, dono de uma sauna

Isso entra em consonância com uma das condições sociais da atividade científica que o autor Joseph Ben-David introduz ao concluir que os interesses sociais e as motivações das pessoas em dada época modulam o quanto a ciência tem de aceitação e de colaboração. Mas à medida que novos achados são edificados, ainda que dificultem a continuidade das pesquisas, devem ser compartilhados com toda a sociedade de acordo com o Comunalismo que é o imperativo de Merton que defende a democratização do acesso aos produtos da ciência. Ao longo do filme, o pesquisador Don Francis lutou por isso, mesmo com resistência do próprio coordenador da CDC – Dr. Jim Curran –  que argumentava que a morte de homens gays, público alvo da doença nos primeiros anos, não tinha interesse jornalístico, além daqueles que queriam ver gays mortos. Mais do que isso, há quem argumentou que dificilmente haveria um financiamento suficiente para pesquisas que tratam de uma “imunodeficiência ou câncer gay”, considerando o moralismo e o preconceito da sociedade norte-americana ainda muito conservadora dos anos 80, além da morosidade do governo federal republicano de Ronald Reagan.     

Bill: O dinheiro para investigação é crucial. Ninguém sabe o que causa isso”

Político: “Vou apresentar um projeto de lei. Mas nem todos os anjos juntos arranjarão dinheiro para algo com a palavra gay.”

trecho de diálogo do filme

A atenção da mídia e o financiamento da ciência só foram melhorando com novas evidências da AIDS acometendo também heterossexuais, mulheres e até recém-nascidos. Mas o cenário em geral é de algumas pessoas bem intencionadas procurando “tirar leite de pedra” em meio a preconceitos e resistências, interesses políticos e corporativos que de nada ajudavam. “E a Vida Continua” não é um filme que o espectador pode encontrar alento, pois sabe que trata-se mais de realidade do que de ficção. Mas como dizia o saudoso Carl Sagan, expoente astrofísico e divulgador científico do século XX:

“Para mim, é muito melhor compreender o Universo como ele realmente é do que persistir no engano, por mais satisfatório e tranquilizador que possa ser. Qual dessas atitudes nos dá maior poder de influenciar o futuro? E se nossa autoconfiança ingênua é um pouco minada no processo, isso é uma perda assim tão grande? Não há razões para acolhê-la como uma experiência de amadurecimento e formação de caráter?”

Referências:

Bacon, F. Nova Atlântida. [J.A.R. Andrade (trad)]. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1984. 

Ben-David, Joseph. O Papel do Cientista na Sociedade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974, pp. 235-256. 

Kuhn, T.E. A função do dogma na investigação científica. [Salles (org.), J. D. Deus (trad.)]. Curitiba: UFPR, 2012, 69 pp.

Merton, R.K. Os imperativos institucionais da ciência. In: J.D. Deus (org.), A Crítica da Ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, pp. 37-52.

Sagan, C. O mundo assombrado pelos demônios: A ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Singapura. Declaração de Singapura sobre integridade em pesquisa. Dados. 2010. 53.

Observação: esta análise se refere ao que foi apresentado no filme And the band played on e não aos fatos ou pessoas reais. 

Vinícius Nunes Alves é Licenciado e Bacharel em Ciências Biológicas – IBB/UNESP. Mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais – UFU. Especialista em Jornalismo Científico – Labjor/UNICAMP . 

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