Pesquisadores da Unesp Botucatu criam aplicativo para avaliar dor em animais

Pesquisa  permite identificar, avaliar e curar a dor em não humanos

Do Jornal Unesp

A dor é a principal causa de sofrimento animal. Entretanto, a incapacidade dos animais de se comunicarem com o ser humano torna difícil a identificação da sua causa e, consequentemente, sua cura. No câmpus da Unesp de Botucatu, um grupo de pesquisadores vem há mais de uma década trabalhando para ampliar o conhecimento que permita identificar, avaliar e curar a dor em não humanos.

Parte desse conhecimento foi disponibilizado na forma de um aplicativo que permite avaliar a dor em diversos tipos de animais, desde os pets (cães, gatos, coelhos) até os animais de produção (bovinos, equinos, suínos e ovinos). A ideia, segundo Stelio Pacca Loureiro Luna, anestesiologista e professor do Departamento de Cirurgia Veterinária e Reprodução Animal da Unesp, é popularizar o conhecimento da dor nas diferentes espécies.

Batizado de VetPain, o aplicativo está disponível para download e pode ser utilizado tanto por um especialista quanto pelo público leigo. Ao utilizar a ferramenta, explica Luna, o usuário pode avaliar a condição geral do animal e decidir qual o melhor encaminhamento a ser feito. “O tutor vai estar apto para avaliar seu animal, calcular a pontuação e decidir se existe a necessidade de tratamento com analgésico ou se o caso exige uma visita ao veterinário”, explica.

Vídeos e testes orientam os tutores durante o uso do aplicativo

Para orientar na mensuração da dor, os usuários poderão consultar uma série de vídeos disponíveis no aplicativo que classificam as reações e comportamentos dos animais. O material descreve, por exemplo, a reação de um cachorro com dor e seu comportamento quando está agitado ou com medo. Depois de entender o que cada comportamento significa, o usuário é convidado a realizar alguns testes que sugerem o quanto ele estaria apto para avaliar o seu bicho. Somente em um terceiro momento o aplicativo aborda a mensuração da dor, com base em escalas específicas para cada espécie.

As escalas de dor são alguns dos produtos das pesquisas realizadas pelo grupo nos últimos anos. Atualmente, Luna coordena um projeto de pesquisa na Fapesp com foco na dor e na qualidade de vida de animais. Boa parte desse trabalho foi disponibilizado no site Animal Pain (www.animalpain.org), e o aplicativo VetPain é um desdobramento do site.

Embora o aplicativo possa atrair o interesse de tutores leigos, o pesquisador da Unesp afirma que a ferramenta também é capaz de melhorar a capacidade de avaliação de médicos veterinários e técnicos da área, ao apontar o que é essencial na avaliação.

Luna cita o trabalho de um grupo de pesquisa da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, que avaliou a capacidade de pessoas com ampla experiência com roedores em identificar a dor nesses animais. O trabalho pediu a dois grupos que identificasse quais roedores estavam com dor.

O primeiro grupo era formado por pessoas experientes no trato com esse tipo de animal, mas sem acesso a informações externas, já o segundo grupo foi informado quais aspectos indicavam dor em roedores. O resultado apontou que o grupo que conhecia os indicadores da dor obtiveram 80% de precisão em suas respostas, enquanto os participantes que não sabiam o que era importante ser analisado alcançaram 50% de acerto, mesmo com a experiência prévia com a espécie. “A experiência não garante uma boa avaliação. O fato de saber o que observar, que é o que as escalas de dor promovem, vai possibilitar melhores resultados”, argumenta Luna.

O professor garante que pessoas que nunca tiveram gatos, porcos ou vacas na vida e não têm a menor ideia de como eles se comportam são capazes de avaliá-los. “Ao olhar a escala e entender os comportamentos é possível detectar com precisão a presença de dor. Quando aprendemos o que analisar, o resultado é muito bom”, afirma.

Estudos da dor incorporaram o uso de medicamentos e escalas

Desde o início de sua carreira acadêmica, em 1987, como professor da disciplina de Anestesiologia, a dor tem sido um assunto recorrente nas pesquisas de Luna. Contudo, nessa época, e mesmo enquanto aluno de graduação, a medicina veterinária tinha o conceito de que os animais não deveriam ser tratados com anti-inflamatórios e analgésicos. Nem mesmo em casos cirúrgicos a analgesia era recomendada. “Acreditava-se que a analgesia tiraria a dor patológica, mas também a dor fisiológica. Dessa forma, os animais poderiam correr, se movimentar e até se mutilar, colocando a perder o procedimento cirúrgico”, explica.

Essa postura só começou a mudar em meados dos anos 1990. O próprio docente, nesta época, orientou um trabalho de mestrado em que fizeram um estudo com grupo controle, tratando alguns dos animais em pós-operatório de cirurgia ortopédica com anti-inflamatório e outros sem. “O resultado foi fantástico: aqueles tratados com anti-inflamatório não só tinham menos dor, como se recuperaram melhor. Os animais tinham menos edemas, o pino dentro do osso migrava menos, a consolidação da fratura foi mais rápida”, relembra.

Nesse primeiro estudo, como ainda não existia escala de dor, eles tiveram que improvisar, com base em escalas aplicadas em seres humanos. A diferença é que para mensurar a dor em humanos, existe sempre a possibilidade de comprovar os níveis de dor através do auto-relato. Para expandir essa avaliação para espécies não humanas, pesquisadores do mundo inteiro precisam investir muito tempo em observação comportamental. A primeira dessas tabelas surgiu em 2007, a de Glasgow, e é específica para cães.

Mas essa escala ainda tinha algumas lacunas no caráter de reprodutibilidade, ou seja, a possibilidade de duas pessoas avaliarem o mesmo animal e chegarem a resultados parecidos. E foi exatamente o que o grupo de pesquisa de Luna alcançou, em 2013, ao inaugurar a categoria intraobservador, baseada em avaliações de outros observadores.

Hoje, a escala para gatos que leva o nome Unesp-Botucatu é a mais citada na literatura e a mais validada do ponto de vista estatístico. Depois da escala de dor para os felinos domésticos, vieram a de bovinos e ovinos, que também levam o nome Unesp-Botucatu e integram o aplicativo.

Em geral, essas escalas são produzidas em projetos de doutorado e pós-doutorado, em que os pesquisadores filmam os animais de forma exaustiva – cerca de 700 horas de vídeos. Na sequência, avaliam e descrevem minuciosamente o comportamento animal: em quadro normal versus em sofrimento. As condutas mais significativas para o quesito da dor em cada espécie são transformadas em vídeos curtos, de poucos segundos, e passam a integrar a escala.

Outra vertente de pesquisa é a da avaliação da dor de forma automatizada. De acordo com o pesquisador, a inteligência artificial chega a uma exatidão de 80%, contra 70% da avaliação humana. Como a face é muito expressiva para a dor, tanto em humanos quanto em não humanos, o grupo de pesquisa do qual Luna faz parte analisou as expressões faciais de gatas em pós-operatório de retirada de ovários. “Medimos cada unidade de ação facial e qual o sentido dos movimentos. O computador mede todos os vetores, tanto a direção quanto a distância, e calcula um índice de dor”, explica Luna. Nessa primeira fase, os pesquisadores ainda precisam identificar os pontos faciais a serem avaliados, o computador só faz os cálculos. Mas a ideia é avançar para a segunda fase e desenvolver o reconhecimento automático dos pontos.

O pesquisador ressalta que para as pesquisas avançarem na identificação da dor com o uso da inteligência artificial é preciso ampliar o banco de dados imagéticos. “Como são os dados que alimentam o algoritmo, quanto mais dados, melhor fica. Senão começa a ter erros”, afirma ele, que vê no recurso da IA uma nova tendência de pesquisas.

Promover bem-estar animal também traz retornos financeiros

Além do caráter ético de amenizar o sofrimento dos animais, o professor também atenta para o fato de que investir em analgesia acarreta em ganhos financeiros para os criadores de animais de produção, como bovinos, suínos e ovinos. Um exemplo, segundo ele, está na analgesia para a castração de porcos que, ainda hoje, é realizada sem anestesia em quase todo o mundo.

“A dor compromete não apenas o bem-estar animal quanto à produção de leite, ganho de peso, ou seja, tudo o que é de interesse do produtor. Fizemos um estudo em suínos que comprova que a castração com anestesia local faz com que o animal ganhe mais peso. Isso quer dizer que, mesmo com o custo da anestesia, a analgesia é vantajosa do ponto de vista financeiro”, declara.

Luna avalia que os cuidados tanto com animais de produção quanto de pesquisa evoluíram bastante desde o início de sua carreira. Um dos pontos de destaque foi a criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), órgão integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, que passou a garantir a formulação de normas relativas à utilização humanitária de animais para o ensino e pesquisa científica.

No que tange a produção leiteira e de corte, muitos produtores já entenderam que o bem-estar animal influencia na produção e investem nisso. Ainda assim, a produção de suínos e aves continua muito precária, deixando esses animais confinados em espaços em que eles não podem se coçar, se mexer nem se levantar.

“Bem-estar não é apenas dor. Existem as famosas cinco liberdades que preconizam que o animal esteja livre de fome, sede, dor, doença e do medo. Antigamente, dizia-se que se o animal estivesse se reproduzindo, estava tudo bem. Mas uma porca pode até não ter medo, mas ela tem muita frustração psíquica ao não conseguir nem se coçar. E isso também é relevante”, garante o pesquisador.

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