Nós que amamos os livros sabemos que sua magia não se limita à visão
Por Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza*
Tigres, espelhos e labirintos fascinavam o escritor argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) desde a infância. Seus poemas, iniciados na vanguarda modernista (ou “ultraísta”), tornaram-se com o tempo sucintas reflexões de alta filosofia. Também escreveu ensaios memoráveis, em que propôs interpretações inusitadas para autores como Cervantes e Kafka.
Tornou-se célebre, porém, pelos contos, que abordavam desde o heroísmo das sagas islandesas até as brigas com punhais nas periferias de Buenos Aires. Também neles resenhou livros fictícios, e chegou a imaginar um caipira (Funes, el memorioso) que sofria a maldição de ter uma memória perfeita e nada esquecer. Foi a maior influência na geração conhecida como “boom latino-americano” (Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa).
Como esperado, Borges amava as bibliotecas. Em um dos seus relatos escreveu:
O UNIVERSO (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais…
Comparar o mundo a uma enorme biblioteca onde as galerias guardavam todos os livros possíveis, já escritos ou não, foi uma ideia que fascinou matemáticos, arquitetos e artistas plásticos. Várias foram as tentativas de produzir imagens que representassem a planta ou perspectivas visuais dessas galerias. Algumas das mais interessantes foram geradas por inteligência artificial (ver figura abaixo).
O texto vai bem além da descrição arquitetônica e aborda a razão de ser dos seres humanos e de seu mundo.
(…) a Biblioteca existe ab aeterno (…) O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o Universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus.
Borges lutou por toda a vida com graves problemas de visão. Com 55 anos, já estava completamente cego. Um ano mais tarde, foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.
Salta à vista de qualquer um o paradoxo. Aquele que entendia o mundo como um grande conjunto de livros aproximou-se de seu sonho quando já não podia usufruí-lo plenamente. Mais uma vez, Borges exprimiu o espanto de forma desconcertante, no seu mais famoso poema. Apresento-o na versão original:
Nadie rebaje a lágrima o reproche
esta declaración de la maestría
de Dios, que con magnífica ironía
me dio a la vez los libros y la noche.
A “ironia” magnífica de Deus, concedendo ao mesmo tempo os livros e a escuridão, não foi lamentada. Borges, ao contrário, pede que ninguém a censure. Essa posição se tornou célebre.
Em 1980, Umberto Eco (1932-2016) lançou seu primeiro e mais famoso romance, “O Nome da Rosa”. O livro foi recebido com entusiasmo por diversas razões. Eco já era uma autoridade reconhecida na crítica literária e semiótica, mas não tinha se aventurado seriamente na ficção. O modelo seguido foi o de um romance policial clássico, com assassinatos e um detetive com extraordinário poder de dedução. Porém o cenário era uma abadia medieval, palco de uma vibrante discussão sobre heresias teológicas. Mais importante que isso, toda a trama se faz em torno de um livro, e da biblioteca que era também um labirinto. Essa semelhança já nos traz pistas. Acrescente-se que um dos principais personagens é um bibliotecário cego chamado “Jorge de Burgos”. A referência foi imediatamente notada pelos críticos e logo admitida pelo autor.
Nós que amamos os livros sabemos que sua magia não se limita à visão. Atire a primeira pedra aquele que nunca cheirou páginas ao abrir um volume, ou que nunca experimentou o “amor táctil” (palavras de Caetano Veloso) pelo papel. Mesmo as plataformas digitais permitem formas não visuais de apreciação das obras-primas da cultura escrita. Ainda assim, nesse momento em que comemoramos os 60 anos da Biblioteca do Campus da Unesp de Botucatu, o exemplo de Jorge Luís Borges é inspirador. No mínimo, nos recorda o quanto os livros iluminam as trevas.
Este artigo é o primeiro de uma série de textos sobre livros escritos em homenagem aos 60 anos da biblioteca do Campus e como preparação para a FLIB (Feira Literária de Botucatu) que ocorre de 6 a 9 de novembro no câmpus da Unesp de Rubião Júnior.
Sugestões de leitura:
– Jorge Luís Borges. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
– Jorge Schwartz. Borges Babilônico: uma Enciclopédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
– Umberto Eco. O Nome da rosa. 20. ed. Rio de Janeiro: Record, 1980.
*Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza é médico e diretor da Faculdade de Medicina de Botucatu