Os níveis de nicotina chegavam a estar até seis vezes mais elevados
Da Agência USP
O Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas (HC) da USP, em parceria com a Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo e o Laboratório de Toxicologia da Rede Premium de Equipamentos Multiusuários da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), divulgou os resultados de uma pesquisa inédita sobre o uso de cigarro eletrônico.
A análise revelou dados alarmantes: entre os participantes que relataram alto consumo diário de cigarro eletrônico, os níveis de nicotina chegavam a estar até seis vezes mais elevados do que os encontrados entre usuários de cigarro convencional que fumavam em média 20 cigarros por dia. Essa diferença significativa sugere que os cigarros eletrônicos podem representar um risco substancialmente maior para a dependência.
O estudo foi realizado com frequentadores de bares, shows e eventos em diversas cidades do Estado de São Paulo, incluindo a capital, e teve como foco a avaliação do comportamento, percepção de risco, perfil socioeconômico e hábitos dos usuários desses dispositivos, também conhecidos como vape. Além disso, o estudo mediu os níveis de nicotina e cotinina presentes nos produtos consumidos.
A pesquisa, intitulada Estudo do Cigarro Eletrônico InCor, Visa e Toxicologia, foi coordenada pela professora Jaqueline Scholz, diretora do Núcleo de Tabagismo do InCor. “Pouco tempo de uso, de um a três anos, já leva [o usuário] a um reconhecimento da dependência e à tentativa de parar”.
A professora diz que nunca viu valores tão altos de nicotina nos pacientes de cigarros convencionais como os detectados durante esse estudo em usuários de vape. Em um dos participantes, foram encontrados 2400µg de nicotina na corrente sanguínea, o que, em comparação aos 396µg de um fumante de 20 cigarros convencionais por dia, é seis vezes maior. O cheiro agradável e a falta de sensação de ardência na laringe causada pela fumaça são facilitadores do uso do cigarro eletrônico. No entanto, Jaqueline Scholz chama a atenção para a “falta de conhecimento e entendimento da população sobre os riscos associados ao vape”.
Apesar dos efeitos ainda não amplamente entendidos, ela diz que a fumaça desses dispositivos “não se compara à do cigarro convencional, porque tem outros produtos químicos, como partículas ultrafinas, que vão para corrente sanguínea”. Para entender o cenário desse produto, a Vigilância Sanitária realizou a coleta de material biológico de fumantes restritos aos eletrônicos e um questionário, no qual obteve 417 participantes elegíveis.
O estudo também apontou que a maioria dos usuários tentou abandonar o dispositivo, mas revelou não ter tido sucesso, evidenciando a dependência e intensificando os impactos emocionais.
Os resultados completos foram apresentados por Maria Cristina Megid, responsável pela equipe de coleta de dados da Vigilância Sanitária, e Marcelo Filonzi dos Santos, do Laboratório de Toxicologia da Rede Premium de Equipamentos Multiusuários da FMUSP.
Sais de nicotina
Com o primeiro pod em 2003 – versão simplificada do vape -, mais de 20 anos se passaram desde a criação do cigarro eletrônico. Além do design atualizado, a forma como a nicotina é apresentada também mudou com o tempo. Desde a 4ª geração, o dispositivo deixou de adotar a nicotina freebase, a mesma presente no tabaco dos cigarros, e passou a utilizar os sais de nicotina. Esses sais são formados pelo processo de neutralização, no qual freebase, alcalina, é neutralizada com ácidos diversos. “Em meus estudos, tenho conhecimento de seis, mas há pesquisadores que indicam mais de 20 ácidos diferentes”, diz Jaqueline Scholz.
Os sais utilizados são altamente concentrados e causam um processo de concentração plaquetária, estimulando a liberação de substâncias pró-inflamatórias, as citocinas. Eles também têm uma taxa de conversão no corpo para nicotinina menor, o que gera dúvidas sobre a metabolização desses sais. Além disso, eles atuam em diferentes canais dopaminérgicos, responsáveis pela sensação de euforia, o que estimula um maior consumo.
“Eu já atendi pessoas que nunca foram fumantes [de cigarro convencional] com níveis muito maiores de nicotina, maiores do que fumantes de longa data do cigarro convencional”, detalha a médica
Foram dados assim que colheu atendendo jovens no Hospital das Clínicas à procura de tratamento para tabagismo que a motivaram a fazer as parcerias para a pesquisa. Para realizá-la, contou com auxílio do professor Marcelo dos Santos, toxicologista que desenvolveu um método menos invasivo para coleta das amostras. Normalmente realizado por exame de sangue, Santos explicou que optou-se por trabalhar com a saliva, por ser uma “matriz menos complexa, não invasiva ou estressante ao paciente, além da menor chance de adulteração”. Essa metodologia foi essencial para a coleta ser feita nos locais de interesse, como bares e eventos.
Após a coleta e preparação das amostras, a saliva passou por um método de análise chamado espectrometria de massas, para identificar e quantificar as substâncias. Para entender a relação dos indivíduos com o cigarro eletrônico de maneira qualitativa, complementando os dados quantitativos da concentração de nicotina, os pesquisadores aplicaram um questionário aos participantes.
Apesar de alguns responderem que só utilizavam aparelhos sem nicotina, “muitos cigarros eletrônicos apresentavam nicotina mas eles não sabiam”, conta Jaqueline Scholz. “Prepondera o uso dos [cigarros eletrônicos] descartáveis ou recarregáveis, que são os que possuem os sais de nicotina”, informa.
Regulamentar e informar
Desde 2009, São Paulo conta com uma lei antifumo (Lei Estadual nº 13.541), que representa um avanço na discussão sobre o antitabagismo no País, mas os números apresentados no estudo revelam que o eletrônico é um novo desafio. Nos usuários com até um ano de uso, a média da concentração do grupo sem dependência foi de 188µg, enquanto nos dependentes a média foi de 435µg. Os resultados mostram que a percepção de dependência só aparece com níveis mais altos de nicotina.
A saúde mental também foi um parâmetro investigado pelo estudo, e foi possível observar uma relação entre problemas psíquicos e a dependência. Outra informação coletada com o questionário é que a maioria dos participantes teve seu primeiro contato com o vape por oferta de amigos ou familiares.
Apesar do cenário, Jaqueline Scholz aponta que “o Brasil já esteve à frente dessa discussão, então podemos ser referência também agora”. Ela destaca que são necessárias estratégias para informar dos riscos a amigos e familiares e outras abordagens centradas no usuário. A professora também defende a proibição. “Se liberar, barateia e o problema chega com mais força no SUS. Não se ganha mais imposto, ao contrário, se perde”, aponta.