Percorríamos as ruas de terra de Anhumas, meus primos e eu, com bolas de capotão e “melancolia ante os desfiladeiros”
por Claudio Coração*
Meu avô atendia aos clientes de sua venda de secos e molhados com quietude. Não saltava de seu gesto qualquer pingo de arrogância. A vendinha de meu avô era simples. Instalada no bairro meio urbano meio rural de Anhumas. Município de Botucatu. Margeado pela estação de trem César Neto, uma das tantas ramificações da antiga Estrada de Ferro Sorocabana. Basicamente, meu avô comercializava cachaça e similares para os trabalhadores rurais. Café, feijão, arroz para as moradoras e trabalhadoras do local. A maioria envolvida nos afazeres domésticos. Os produtos eram vendidos a granel. Eu, pequenino de idade e de ideias zanzava naquele chão encardido de vermelho da vendinha de meu avô. Meus pais, quase sempre, não gostavam que eu ficasse lá direto. “Cuidado com os bebuns”, “Qualquer dia desses pode acontecer algo”. E acontecia. De noite, os adultos jogavam caxeta, bilhar. Eu a espiar, a espreitar. Gostava do barulho das cartas caindo sobre a mesa. Ruídos quase imperceptíveis. Dos palavrões. Do cheiro de especiarias misturado ao dos cigarros, das porções de defumados. Do mofo das instalações da despensa, onde se jogava, onde se encontravam as mesas de sinuca. Mirava nas tacadas, como o meninão do caixote do conto homônimo do escritor e jornalista João Antônio. Fixava-me nas epopeias do carteado. Nas rodadas intermináveis dos blefes. De vez em quando rolava uma briga. Presenciei algumas bem violentas. Outra imagem definitiva do cenário eram os cavalos amarrados ao poste do lado de fora da vendinha. Animais eram veículos de trabalhadores de sítios vizinhos que ali passavam, paravam para uma tragada, uma comida rápida. Falavam de futebol. Falavam muito. Na vendinha do meu avô se discutia o desempenho do time do bairro. Os cruzamentos da loteria esportiva. Faziam-se apostas. Bolões. O jogo do bicho era rimado por códigos. Não entendia direito as relações entre números enormes e certos animais. Doce contravenção. Corria o ano de 1982.
A Copa era na Espanha. E os personagens matutos da vendinha de meu avô entendiam o significado da arte. Por mais que não parecesse. Ou se evidenciasse. Já que eram mais entrosados ao labor da roça, ao trabalho pesado em indústrias de alimentos, instaladas entre o distrito de Anhumas e Botucatu, às margens da rodovia Marechal Rondon. Mas aquele pessoal todo entendia do riscado das quatro linhas. E como. Admiravam o time de Telê Santana. O fórum diante do qual me era apresentada a noção do sublime era a vendinha de meu avô. Por meio do futebol jogado pela seleção brasileira de 1982. Sabia o time de cor: Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior. Falcão, Cerezo (Paulo Isidoro de vez em quando), Sócrates, Zico, Serginho e Éder.
Percorríamos as ruas de terra de Anhumas, meus primos e eu, com bolas de capotão e “melancolia ante os desfiladeiros”. Meu avô sempre me protegia. Das surras em casa. Das escolhas incertas. E eu apreciava escutá-lo em sua tranquilidade, em seus passos lentos, contemplativos. De certo modo, meu avô era bem próximo da fineza da nossa seleção nos gramados espanhóis. Era também uma espécie de técnico do time local, nas “peladas” domingueiras. Meu pai jogava na ponta-direita, meu tio na ponte-esquerda. Nepotismo? Talvez, mas eles “comiam” a bola. Quantas aventuras repercutidas na vendinha, após os jogos. Quantas importâncias ditadas no percurso do Barrancão (nome do campo de várzea) até a venda. “Vamos armar o nosso time tal qual o do Telê”.
Meu avô sempre levava as encomendas dos clientes nos sítios mais afastados da estação de César Neto, ponto de referência. De graça. “Competia” com a igreja aos domingos, localizada quase defronte de seu estabelecimento; dia de futebol, de reunir o pessoal. Era também um homem de fé. De fé escaldada. É que o tratamento do diálogo, com quem quer que fosse, fazia do interlocutor um privilegiado. Como destaca Antonio Candido, em Parceiros do Rio Bonito, ao falar do hábito do caipira: “verifica-se que a vida passada vai sendo incorporada rapidamente ao domínio da lenda”. Meu avô alinhavava as histórias que pra ele contavam com as que ele contava. Em uma linha de passe similar a de Zico, Sócrates e Falcão.
As ondas do rádio transmitiam as partidas. Fiori Gigliotti, Osmar Santos. Na tevê, a voz cristalina de Luciano do Valle embalava nossos corações. Márcio Guedes nos comentários, Juarez Soares na reportagem. Em um dos balcões da vendinha havia um monstrengo aparelho radiofônico a ecoar frequências curtas, tropicais, médias. Meu avô, nos momentos de tédio, ficava lá a ruminar qualquer ideia solta no farfalhar das guarânias apreendidas em alguma estação do cone sul da América. No espaço de tenras discussões, eu começava a entender como o jogo da vida é próximo da brincadeira das conversas futebolísticas. “Pô, o Júnior tem que jogar no meio campo”. “O Zico é maior desde Pelé”. “O Sócrates é gênio, mas tem de parar de beber”. “O Chulapa não engraxa a chuteira do Careca”. Quantas possibilidades de narrativas a partir dessas falas.
O escrete de Telê era regido pelo primor. Antitruculento. O chamado futebol-força começara sua hegemonia na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra. O time de 1982 era o oposto disso. Zico era o craque. Sócrates a originalidade. Falcão a elegância. Serginho Chulapa o indomável. Oscar a correção. Eder o canhão. O time se movia com música no passeado próximo ao balé. Não havia pose naquelas feições. Como ratifica Eduardo Galeano, em Futebol ao sol e à sombra, “a seleção brasileira de 1982 não teve sorte, mas deliciou o público com o seu talento, sua elegância”. Toninho Cerezo, o nosso volante, era meio desajeitado, mas também o mais elegante. Não chegava nem perto do botinudo cabeça de área. Desde o tricampeonato de 1970 não havia uma seleção como aquela. Com a altivez desajeitada de Cerezo e a compassada de Sócrates. Era impossível pensar que aquele time perderia um dia na vida. O time de Anhumas, no gramado das tardes de domingo, tentava repetir aqueles feitos do futebol canarinho, já dissemos. Havia até uma música que embalava o pessoal. Um samba cantado por Júnior, o lateral esquerdo da seleção: “voa, canarinho, voa, mostra pra esse povo que és um rei; voa, canarinho, voa, mostra na Espanha o que eu já sei”.
A condição de derrotados poderia ser frustrante. Entretanto, para o time de 1982 o fracasso virou trunfo. Diferentemente da “vencedora” seleção de 1994, por exemplo, das muitas “eras dunga”, dos parreiras da vida, arcados até as vísceras a um futebol de resultados, pragmático, duro, o selecionado de Telê Santana era craque também na “glória de chorar”. Poder-se-ia articular algum gancho de lirismo, mas a narrativa do gran finale estava sempre colocada, o happy end enfim.
Mas a seleção perdeu. Para a Itália. A tragédia de Sarriá rendeu ao mundo a comovente imagem de um torcedor menino brasileiro chorando. Capa do antológico Jornal da tarde. Era o choro de todos nós. Na derrota de um time “imbatível” estava lançada a grandeza da fragilidade. Lembro-me dos adultos chorando na vendinha. Um choro, de certa forma, celebratório. Como se entoasse um hino de lágrimas à geração de 1958, com os elegantes Zito e Didi e o endiabrado anjo Garrincha. Como se rendessem palmas à geração de 1970, com tantos capitães. A derrota do timaço dos sonhos diante da Itália de Paolo Rossi. Não. Não era possível. Era possível sim. De repente, as artimanhas de todos se fundavam em uma belíssima tristeza. Sofremos. Como que antecipando os melancólicos anos 1980 no Brasil, e sua felicidade de araque. É coincidência eu sei. Mas a vendinha de meu avô talhou em verso e prosa o sofrimento de homens ásperos. Tomando suas cachaças, comendo porções de mortadela, dançavam a derrota de todos os dias. É como se a vaidade fosse volatilizada. Pelo menos naquele rompante do tempo parado, em Anhumas.
O saudoso doutor Sócrates daria pista sobre o legado da seleção de 1982. “Quem disse que o importante é vencer”? Parece-me a prefeita tradução de um time que jogava em uma harmonia imperfeita. Como aqueles tantos “jogadores” em seus leros e boleros na vendinha do maestro Genoal. Meu avô Genoal. Chamado por todos do local de Januário. Um camisa 10.
*Cláudio Coração é botucatuense e, atualmente, leciona sobre Comunicação Social na Universidade Federal de Ouro Preto (MG)