O trabalho é hostil

Contemplar é um sacrilégio. A criatividade é, muitas vezes, moeda de troca

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por Cláudio Coração

No início de seu ensaio “O direito à preguiça”, de 1883, Paul Lafargue crava: “Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda degeneração intelectual, de toda deformação orgânica”. A jornalista Eliane Brum, em texto publicado recentemente no El Pais Brasil, aponta que estamos condicionados ao tripé correndo-exautos-dopados. Mas como pensar a premissa de Lafargue na lógica do trabalho de hoje, em diálogo com os sintomas apreendidos por Eliane Brum? A coisa só pioraria, parece. O trabalho é, mais e mais, fatigante. Talvez por se consolidar como um “local privilegiado de razão”, mas com demandas do capitalismo acelerado fungando no cangote, provocativamente. Com essa lógica é evidente que os trabalhadores rendem-se: ao mercado, às migalhas da ascensão social, às mesquinharias do poder, à dura sobrevivência diária.

Trabalhar é se deparar, então, com assédios decorrentes das relações apressadas. Traumas, desvios morais, crises pessoais fazem parte do cardápio da “degeneração intelectual e da “deformação orgânica. Os sinais podem ser captados no tempo da produção, regido por instâncias de controle e de punição. São muitas. A reflexão fica à deriva, pois a hostilidade é embalada pela interdição do pensar. Contemplar é um sacrilégio. A criatividade é, muitas vezes, moeda de troca. A competitividade é imperativa. Os humores são ditados pelo compadrio. A independência é uma peça rara. O aprendizado técnico é movido pela tutoria. Da rivalidade que cega. Do pesado labor. Todos ficam doentes com essa engrenagem. A estrutura do mundo do trabalho é habitada por zumbis envaidecidos, conforme assinala Eliane Brum.

É preciso parar para respirar. É instigante pensar, assim, no que preconizava Milton Santos. O geógrafo baiano, em “Elogio da lentidão”, diz o seguinte: “Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude. Quanto aos demais não incluídos, é como se apenas fossem arrastados a participar incompletamente da produção da história”. É mais que razoável expressar a negação da “pressa como virtude”. A ideia do desvio, da experimentação parece ser válida, nesse tocante. Nas possibilidades de o ambiente do trabalho ser um campo de batalha a empreender uma lenta transgressão. Seguindo ainda a pista dada pelo professor Milton Santos: “aquilo a que chamamos de “informalidade da economia” melhor cumprirá suas funções econômica, social e política sem a necessidade de formalizações alienantes e fortalecendo o papel da cultura localmente constituída como um cimento social indispensável a que cada comunidade imponha sua própria identidade e faça valer, a um ritmo próprio, o seu sentido mais profundo”.

Portanto, poderíamos chamar o elogio da lentidão de transgressão necessária. Um antídoto à dureza das relações infestadas pelo paradigma da velocidade e da eficácia. Uma receita contra a aspereza. Milton Santos se autodefinia um outsider. Façamos dessa caracterização um desafio. Sejamos outsiders. Dispostos a encarar uma insurgente necessidade: proclamar o elogio da inventividade, “fortalecendo o papel da cultura localmente constituída como um cimento social indispensável a que cada comunidade imponha sua própria identidade”. Um pouco como no espírito daquela canção: “somos o que há de melhor, somos o que dá pra fazer”.

Cláudio Coração é botucatuense. Leciona na Universidade Federal de Ouro Preto-MG (UFOP) e escreve por aí.

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