100 anos de pandeiros, cuícas, malandros e poesia
Muitos e muitos nomes surgem na lembrança nesta hora das homenagens do centenário
por Paula Vermeersch
Em 27 de novembro de 1916, o carioca Ernesto dos Santos, conhecido como Donga (1889-1974), registrou uma canção que teria sido composta, nos meses anteriores, numa casa na Praça XV. No local, encontravam-se músicos e literatos, em rodas de percussão, violas e flautas- um terreiro de candomblé, aos cuidados de Hilária Batista de Almeida, baiana de Santo Amaro da Purificação, sacerdotisa Ketu de Oxum, a Tia Ciata (1854-1924). Donga e Tia Ciata se tornaram personagens de uma narrativa, agora centenária, de um ritmo e um estilo de vida- o samba.
No 20 de janeiro seguinte, a Casa Edison, através do selo Odeon, lançou em 78 RPM a gravação de “Pelo Telefone”, interpretado por Manuel Pedro dos Santos, o Baiano (1870-1944), também de Santo Amaro da Purificação. No início da gravação o locutor identifica- “Pelo Telefone, Samba Carnavalesco gravado por Baiano e o Corpo de Coro, para a Casa Edison Rio de Janeiro”, e logo após se ouvem os versos célebres “O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar/ Que com alegria não se questione para se brincar”- porque foram censurados- no original, “O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar/ Que na Carioca tem uma roleta para se jogar”, fazendo referência a um episódio causado pelos repórteres do jornal A Noite, em 1913, quando foi noticiado que existia um cassino clandestino no centro do Rio e o delegado nada fez- o problema é que a notífica era falsa e foi “plantada” justamente para averiguar o nível da falta de compromisso dos agentes da lei em investigar certas práticas criminosas na cidade. O gênero surge já polêmico, moderno, crítico e afiado, bem como divertido e arrojado.
No anúncio da música e na letra se ouve claramente a palavra “samba”- de origem incerta, o termo designa um gênero musical complexo, de raízes africanas, uma dança e um jeito de viver. Das proximidades da Praça XV- a chamada Pequena África do Rio de Janeiro- saíram os primeiros compositores , intérpretes e músicos do samba. Muitos baianos- muitos fora dos padrões culturais enaltecidos pela elite branca. Trabalhadores de diversos ofícios, foras-da-lei, os sambistas sofrerão os efeitos dos bota-abaixos na então capital brasileira. Quando das demolições do Morro do Castelo e mais tarde de todo o entorno da Praça XV para a construção das grandes avenidas, nas décadas seguintes, as agremiações de músicos, dançarinos e artistas irão para outros bairros. Não há mais a casa de Tia Ciata nem outros lugares identificados como importantes para o desenvolvimento do samba, mas a Pedra do Sal, na região portuária, conservou a memória dos pontos de encontro dos sambistas do passado.
Muitos e muitos nomes surgem na lembrança nesta hora das homenagens do centenário- como os de Angenor de Oliveira, o grande Cartola (1908-1980), de Noel Rosa (1910-1937) e suas histórias engraçadas na Vila Isabel, assim como as de sua maior intérprete Aracy de Almeida (1914-1988), a irreverência de Bezerra da Silva (1927-2005), a gratidão que os paulistanos sentem por Adoniran Barbosa (1910-1982) e seu lirismo e a voz e o violão de João Gilberto. Considerado uma das grandes expressões brasileiras, o Samba hoje alcançou o status de Arte- do espetáculo grandioso da Marquês de Sapucaí à simplicidade de uma roda de pagode num churrasco com amigos, o centenário Samba confirma os versos de Paulinho da Viola- ainda contamos as histórias dos grandes mestres, ainda se bebe da chama acesa.
Paula Vermeersch é docente de História da Arte e da Arquitetura na Faculdade de Ciências e Tecnologia- Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de Presidente Prudente.