Que compreendamos o outro não dele exigindo o acerto torto da moeda de troca corroída e corrompida
por Cláudio Coração
Para que saibamos identificar nossos percalços e nossas dores, é necessário matar 2016. De modo truculento e com algum desamor. Assim podemos cantar um uivo dilacerante para 2017. Como uma canção mal acabada de punk rock melódico. Entoemos uma prece. Embora tenhamos a noção exata das muitas ressurreições do ano que termina.
Que isso sirva de esteio para nos despedaçarmos, então. Que nos livremos dessa ânsia que não nos completa. Que aprendamos as lições da contemplação. Que nos desconectemos. A leveza dos dias exige que paremos. Menos é mais. Além de um chavão simplório, enfrentar os canalhas – e no Brasil de hoje há canalhas de todas as estirpes – é empreender o acalanto dos gestos miúdos como força diante da avareza dos estímulos porcos.
Que compreendamos o outro não dele exigindo o acerto torto da moeda de troca corroída e corrompida. Que respeitemos o antagonista na sua solidão. Que mergulhemos na brandura do abismo do outro. Que enfrentemos com coragem o inimigo, contudo. A inveja rastaquera das traições diárias não impedirá a bela batalha que podemos construir. O nosso coração é mais alvissareiro do que qualquer propaganda. Colocar o fone de ouvido e escutar a música reminiscente. A ópera da saudade. O passado que poderia ter sido e não foi. E, mesmo assim, ainda estar por ser. Ao que vai nascer. Em contraste com o choque frontal do ciúme barato, do egoísmo vil. Livremos-nos daquilo que nos adoece. Que nos entorpece, pois não cabe em nossas percepções respiradas bravamente.
É preciso acreditar no traquejo de nossas vocações, é preciso advertir a resignação que nos consome a saltar a crença das pulsões. Somos mais do que dizem que somos. Nessa parte da América do Sul há transas descomunais. Muito além das cintilantes marcas projetadas pelo espetáculo. Nossa condição é a luta. Assumamos a destreza das coisas. Rumemos ao sabor das maçãs do éden do lado de baixo do equador. É necessário discernimento e disciplina para subverter. Ninguém faz poema moderno sem ler sonetos. A solidariedade é o antídoto perfeito contra o narcisismo hipócrita. Que sejamos doces em nossas relações, percebendo paradoxalmente a ideia amarga de que a vida é um sopro. Sem mistificações, já dizia o poeta mineiro.
Encaremos a rotina sem a agulha da futrica, do asco. Saibamos expurgar nossas piores falas, nossos piores sentimentos. Rompamos com a vulgaridade. Entretanto, saibamos que a ingenuidade não é salvo conduto de ação. Reajamos a qualquer violência. Benevolência e maledicências são irmãs impostoras. Assim como o sucesso e o fracasso, costumava dizer o saudoso Antonio Abujamra.
Tenhamos sabedoria para perceber os jogos políticos e afetuosos. Reforcemos como um cintilante tratado estético o prumo do corpo, da saúde e dos desejos. É preciso desplugar do excesso de informação. Dessa histeria característica do nosso tempo: a histeria da produção e da reprodução do real, conforme nos ensina Jean Baudrillard. Somos mais lindos e elegantes. Ou podemos ser. A natureza nos chama. Pequenas sutilezas fazem diferença. Merecemos algo mais instigante do que a narrativa das manipulações dos hábitos.
Cuidemos do silêncio do que chamam de espírito. Abracemos e nos deixemos abraçar. A reflexão não é nada mais que a propositura de um elo de afeto. Queiramos que isso se manifeste. Bonitamente. Movamos o corpo. Não na dança adestrada das academias fosforescentes de ginástica. Caminhemos como numa harmonia desarticulada. Visualizemos a singeleza das árvores e dos redemoinhos. Do que sobrou do céu. Fixemos nossos lábios na reserva de carinho do beijo, do vinho, do azeite, da erva. O suor do trabalho extravasado nas mãos dadas com a amada, no parque verde da cidade. Desembruteçamos a cidade, aliás. Essa por vezes terrível morada.
Façamos com veemência o registro das prioridades. Que em 2017 dosemos o descartável pelo atributo da querência. Ser é mais radiante que ter. As quinquilharias da sociedade do consumo são apostas gelatinosas a serviço dos escroques. Que nossa ação nos faça aceitar as diferenças, que nos atentemos a tantas desigualdades, que nossos olhares estejam perspicazes ao movimento das marés e dos humores. Que comamos o alimento bem preparado, saudável, sem veneno. Que o baile da existência seja também alimento. Que lutemos contra o inferno da fome e da miséria. Que tenhamos a coragem de empreender um futuro digno para filhos e netos. Que tenhamos alento para continuar a resistência, em um país achacado por um golpe.
Que em 2017 sejamos plenos da consciência de que somos frágeis diante do mistério transcendente. Mas que somos intransigentes com as pragas do reacionarismo, do conservadorismo, do fundamentalismo. Que em 2017 respiremos a instransponível dignidade dos nossos melhores roteiros do porvir. Que as esperanças se materializem no embalo da canção de Belchior: “tudo que pode ser e ainda não é (…) coração, cabeça e estômago”.
Atravessemos altivamente as trevas! Um brinde!
Cláudio Coração é botucatuense. Leciona na Universidade Federal de Ouro Preto-MG (UFOP) e escreve por aí.