Museu resgata o passado da ferrovia em Botucatu
Com a ferrovia Botucatu consolidou-se como um dos principais centros urbanos do interior
por Flávio Fogueral*
Pelos trilhos da antiga Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) e posteriormente Ferrovias Paulistas S.A. (Fepasa) estão histórias de botucatuenses que construíram vidas inteiras dedicadas à ferrovia. Sejam maquinistas, controladores de tráfego, mecânicos, chefes de operação, bilheteiros, entre tantas outras funções que faziam as empresas serem importantes para o desenvolvimento de muitas cidades.
Botucatu mesmo teve seu crescimento atrelado à chegada da ferrovia no final do século XIX. Os primeiros indícios da chegada deste modal de transporte datam de 1882 (mais precisamente em 25 de setembro), quando a Estrada de Ferro Sorocabana obteve permissão do governo paulista para estender seus trilhos em direção ao município que, à época, era um entreposto comercial e uma das principais cidades antes do grande sertão brasileiro. A chegada da ferrovia também veio de uma disputa entre a própria Sorocabana e a Companhia Ytuana de Estradas de Ferro para a ampliação da malha no centro-oeste paulista. Isso porque a relevância industrial e da produção de café demandavam escoamento eficaz ao porto de Santos e outras regiões de consumo.
A chegada da ferrovia trouxe inovações como métodos de construção das estradas, ainda mais pela peculiaridade do relevo, extremamente ingrime e cheio de montanhas. Era necessário construir túneis, pontes e meios para que as máquinas subissem os terrenos. Outra novidade foi o telégrafo, que mudou a comunicação nas então pequenas cidades.
Com a ferrovia Botucatu consolidou-se como um dos principais centros urbanos do interior, deixando de ser mero entreposto. Pelos trilhos eram escoados produtos da indústria, da agropecuária e, claro, no transporte de passageiros. E, com a ferrovia, um grande contingente de profissionais era demandado para sua operação. Foram construídas estações, que se tornaram famosas pela arquitetura e por serem centros de convivência, além de um complexo de apoio como oficinas, escritórios e até estruturas para acomodação de funcionários.

Foi assim por diversos anos, em que a ferrovia solidificou forte presença na economia e cotidiano de Botucatu. No entanto, a mesma esteve envolta em mudanças significativas devido a crises. A Sorocabana passou de uma empresa de capital privado ao controle governamental na década de 1950 e, em 1971, sendo extinta e incorporada à Fepasa. Ficou sendo uma empresa estatal até 1998, quando foi transferida à Rede Ferroviária Federal e, posteriormente, privatizada. Durante anos as estações e patrimônio ferroviário foram deixados a segundo plano, sem preservação e à mercê da deterioração do tempo e saques constantes. Locomotivas, vagões, estações, plataformas, trilhos, oficinas abandonadas constituem cenários comuns no interior paulista nas últimas duas décadas.
É neste contexto, de saudosismo e tentativa de preservar importante pedaço da memória ferroviária em Botucatu que iniciativas, sejam públicas ou mesmo particulares, procuram mostrar a relevância da ferrovia na vida de muitos paulistas.
O resgate ao passado certamente se fará presente no Museu do Ferroviário, em Botucatu. Criado e mantido pela iniciativa do funcionário público aposentado, Antônio Carlos dos Santos, o espaço é uma imersão completa nos áureos tempos da ferrovia no município. São mais de três mil objetos, sendo que 80% do acervo centra-se na ferrovia como peças de locomotivas, trilhos, equipamentos usados na operação da ferrovia, telefones, rádios, recortes de jornais, fotografias, bilhetes de viagens, ferramentas diversas para manutenção, bem como objetos antigos relacionados ao cotidiano de décadas passadas.
Toda essa história tem início em 2009 quando Santos, incentivado por amigos, começou a coletar os primeiros objetos para o acervo, o qual alocava na garagem de uma casa de sua propriedade na Vila Maria. Foi então que viu que seria necessário expor todo o material ao público. Em 30 de abril de 2011 abriu as portas da casa para que a população pudesse conferir o incipiente museu. “Quando aposentei, montamos um grupo para percorrer as linhas férrea (Aventureiros do Túnel). Passamos pelas estações e coletando materiais que estavam abandonados na extensão. Os próprios colegas de caminhada sugeriram que colocasse os objetos em exposição. Aproveitei a casa que estava desocupada e a estruturei para alocar o acervo e receber visitantes”, explica Santos.

Algumas das principais atrações são as maquetes, sendo que uma delas consiste em uma réplica exata do parque ferroviário na área urbana de Botucatu. Com cinco metros de extensão, reproduz a atual estação “Nelson Dib Saad” (inaugurada em 1889, sendo que a atual versão data da década de 1930 e, por fim, reinaugurada restaurada em 2016), oficinas de reparo e todo o entorno, com escritórios da central de controle, bem como residências, torres de iluminação, entre outros detalhes como trens, passageiros e veículos. A miniatura, criada pelo telegrafista da EFS, Jayro José dos Santos, foi cedida ao museu assim como grande parte dos objetos encontrados pelas salas temáticas, as quais foram nomeadas como “Maria Fumaça” e “Telégrafo”.
Passada mais de uma década de existência do museu, seu acervo cresce a cada dia, com doações de populares, principalmente de família de antigos ferroviários. “Tem muita família com objetos dos pais que trabalharam na ferrovia e não sabiam onde deixar. Me procuram e fazem as doações pois sabem que aqui estarão conversadas e farão parte de um resgate histórico”, salienta.

Tais doações, por exemplo, foram de próprios ferroviários aposentados que guardavam lembranças da empresa onde se dedicaram por décadas. Há, por exemplo, uniformes da antiga Fepasa, bem como dois telégrafos para comunicação: um usado pela Empresa de Correios e Telégrafos e outro pela própria Sorocabana. É neste último equipamento que Santos frisa ser o diferencial do museu, já que é possível enviar a mensagem com dois toques simultâneos, algo que era escasso nas empresas. Outro atrativo é a galeria de fotos referentes à construção dos túneis por onde as linhas férreas passam. Há imagens do processo de perfuração das rochas (totalmente manual e com auxílio de animais), da visita de governadores e até recorte de jornais, datados da década de 1950, que frisam os trabalhos de engenharia desempenhados pela empresa concessionária do serviço. “Muitos dos primeiros trabalhadores vieram da cidade de Botumirim (MG) e também do nordeste, sendo que alguns decidiram fixar residência por aqui. Por isso a temos como cidade-irmã”, salienta.
Entrar no Museu do Ferroviário é literalmente viajar pelos trilhos da história botucatuense. A visitação ao espaço é gratuita, podendo ser feita de segunda a sexta-feira, das 13 as 19 horas. O local aceita visitas de grupos de estudantes e entusiastas pela ferrovia, mediante agendamento.
Confira mais imagens do museu
Serviço
Museu do Ferroviário
Onde: Rua Armando Salles de Oliveira, nº 261- Vila Maria
Quando visitar: de Segunda a Sexta-feira, das 13 as 19 horas.
Pelos trilhos da vida…
A relação de Antônio Carlos dos Santos com a ferrovia vem de seus antepassados, assim como a maior parte dos botucatuenses. Seu avô, Antônio Molina, que emigrou da Espanha ao Brasil e exerceu diversas funções até entrar na Sorocabana. Para isso, obteve sua naturalização assinada pelo então presidente Getúlio Vargas. O documento, inclusive, está em exposição no museu. Parte de sua família, como tios e o pai, José dos Santos, também atuaram pelas linhas da Sorocabana.

Tendo esta influência dentro de casa, decidiu tentar carreira na empresa. Prestou, em 1968, processo seletivo para estudar na antiga escola que a Sorocabana mantinha, o Centro de Formação ao Trabalhador, localizado na Rua Major Matheus. “Quando tinha 15 anos já queria trabalhar na ferrovia. Naquele tempo podia se contratar menor de idade. Meu avô, pai e tios já eram ferroviários. Prestei a prova para entrar nessa escola, que oferecia o ensino convencional, mas também preparava para atuar nas linhas, com todas as noções possíveis de operação. Passei na prova e fiquei na lista, mas davam preferência a filhos de ferroviários e não consegui entrar. No mesmo ano fiz o concurso para entrar nos Correios, onde fiquei por mais de quatro décadas”, lembra.
Mesmo trabalhando em outro segmento, jamais deixou de ter uma admiração pela ferrovia. Desde viagens em trens e amizades com ferroviários, Santos vivenciou, como muitos, o ápice e declínio deste relevante modal de transporte. “Triste ver essa situação. Boa parte dos ferroviários, que se dedicaram a vida à Sorocabana, estariam totalmente decepcionados com o que restou dela. Não fui ferroviário, mas ando pelas linhas do trem e vejo este abandono, de estações que não existem mais, como em Itatinga que possuía duas. Outros locais de Botucatu como Pátio 8, Apuãs, entre tantos que estão abandonados. O museu serve para que as pessoas não esqueçam essa parte de nossa história”, explana.
Santos ainda colaborou com a produção do documentário “O Túnel- O relato da inauguração do novo traçado da Sorocabana no trecho de Juquiratiba a Botucatu”, lançado em 2017 (disponível na internet) e que teve a produção do Grupo Aventureiros do Túnel. No vídeo é contada a trajetória da construção dos dois túneis férreos construídos na Cuesta, em meados da década de 1950. Estes trabalhos estão publicados em jornais da capital na época, sendo que um deles está exposto no Museu do Ferroviário.
Você Sabia?
A ferrovia em Botucatu foi construída pela já relevância da Cidade na produção de Café e foi disputada entre duas empresas: a Sorocabana e a Ytuana. Ambas fizeram incursões pelo interior para disputar a hegemonia no transporte ferroviário.
Além de inovar em engenharia, a ferrovia trouxe avanço significativo ao município em tecnologia como o telégrafo. A urbanização acelerou-se devido à conexão com outras regiões do Estado, bem como a chegada de imigrantes. De cidade agrícola, Botucatu passa a se tornar industrial. De 9300 habitantes em 1870, o município chega a 26.047 em 1900.

A estação de Rubião Júnior (à época Capão Bonito), inaugurada em 5 de março de 1897, serviria como embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. Objetivo era atingir as cidades do noroeste do estado como Agudos e Bauru. O local foi desativado em 1999, sendo esta ainda de propriedade da empresa concessionária pela operação da linha, atualmente a Rumo Logística.

Com a construção do ramal de Botucatu, a inauguração ocorreu em 20 de abril de 1889, em uma solenidade tumultuada, com grande confusão e brigas, mas sem deixar vítimas fatais.
A atual Estação Ferroviária de Botucatu é a terceira versão construída, sendo inicialmente feita em madeira e depois substituída por alvenaria. O prédio como boa parte dos botucatuenses o conhece foi inaugurado em 6 de julho de 1934, com clara inspiração nas paradas inglesas.
Hoje estacionada em frente à estação ferroviária, a locomotiva Vintinha (no estilo “Maria-Fumaça” passou por extenso processo de restauração em 2012, no valor de R$ 400 mil. Atualmente é uma das principais atrações turísticas do município, sendo que o espaço onde está alocada foi devidamente adequado como sendo uma “plataforma” para que as pessoas fotografem e contemplem a máquina.
Quando da criação da Fepasa, em 1971, estimava-se que mais de 30 mil pessoas trabalhassem diretamente para a empresa, sendo uma das maiores empregadoras do Estado. Somente a Sorocabana, que foi incorporada pela estatal, possuía 16 mil pessoas atuando em seus trilhos.

Em uma das tentativas de revigorar o transporte de passageiros, o governador Mário Covas cria em 1997 o Expresso Ouro Verde, considerado de luxo. O trem faria o trajeto São Paulo-Botucatu-Presidente Prudente. A iniciativa fracassou, com a composição ficando estacionada no pátio em Botucatu. Quase a totalidade do trem como peças e materiais de seu interior foi saqueada.
As estações de Botucatu foram fechadas em 1999 quando da extinção da Fepasa e a incorporação da mesma à Rede Ferroviária Federal. Inicialmente guardas faziam a segurança do local, sendo que mesmo assim as paradas eram alvos de saque e vandalismo.
Com a liquidação da ferrovia, em 22 de maio de 2001, parte dos funcionários e dos bens foram retirados. No dia seguinte, o então prefeito Mário Ielo instalou provisoriamente o gabinete da Prefeitura no prédio da diretoria da Divisão da EFS (na Rua Major Matheus). Era o primeiro ato para que o município encampasse parte do patrimônio ferroviário.

A revitalização da Estação de Botucatu teve início em 2011, sendo concluída cinco anos depois. Foram investidos R$ 2 milhões em um projeto que restaurou com exatidão parte da estrutura física. Um dos exemplos é o bar, que mantém as características originais. Atualmente o complexo abriga equipamentos públicos de cultura, lazer e também escritórios administrativos da Prefeitura.











