por Cláudio Coração
Como todos sabem, a presidenta Dilma Roussef foi vaiada na abertura da Copa das Confederações, em Brasília, no dia 15 de junho. Não conseguiu pronunciar três linhas protocolares, sem que ouvisse apupos estridentes dos torcedores. Alguns porta-vozes, à época, tentaram minimizar o episódio, politicamente. O ministro da Educação, Aloizio Mercadante, socorreu-se a Nelson Rodrigues: “estádio de futebol vaia até minuto de silêncio”. O ministro da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, arrematou algo do tipo: “estádio de futebol é ambiente propício para a vaia, principalmente aos políticos”.
Essas declarações me fizeram lembrar o show de João Gilberto com Caetano Veloso, em 1999, no Credicard Hall, em São Paulo. Na ocasião, João Gilberto se irritou com sons e conversas da plateia. Deu um pito na rapaziada endinheirada do local e ouviu sonoro mau agouro em seguida. O bossanovista de Juazeiro analisou o ocorrido com a indefectível frase “vaia de bêbado não vale”. Caetano sustentou que aquelas vaias não significavam uma antipatia a João, mas representavam o comportamento egoísta e mimado de setores da sociedade paulistana.
As vaias à Dilma estão muito próximas do espírito daquele show de 1999. A maioria esmagadora dos presentes no estádio Mané Garrincha era gente branca e engomada. Sobre tal público e a antipatia à presidenta, o jornalista Luiz Carlos Azenha escreveu, em sua página no facebook: “Dilma provavelmente foi vaiada por leitores da Veja, aquela que o governo federal financia para demonizá-la”. Azenha sintetizou a postura tecnocrata do governo em relação à mídia de postura oposicionista e, ao mesmo tempo, anteviu dias terríveis. E eles vieram. Protestos, manifestações e muita histeria tomaram conta do país, dias depois, a partir das reivindicações por redução dos preços das tarifas do transporte público em grandes cidades brasileiras, capitaneadas, principalmente, pelo Movimento Passe Livre. No entanto, depois do dia 20 de junho, mais especificamente, os movimentos por transporte público barato e digno se transfiguraram em várias bandeiras. A confusão se instalou. A luta de cunho popular (a redução dos preços das passagens de ônibus e metrô) adquiria um rumo, digamos, mais “conservador”. Cartazes com frases como “queremos os militares de volta no poder”, “vamos salvar a classe média”, “menos impostos”, “fora Dilma”, “PT nunca mais”, “Playstation 4 por mil reais” ganharam as ruas. Houve, a partir disso, uma clara instrumentalização, de viés golpista, pela mídia hegemônica, com o intuito de normatizar a narrativa dos protestos contra o governo federal e a presidenta Dilma Roussef. Dessa forma, as balizas e os atores de luta popular – tratados no início dos protestos, por essa mesma mídia, como baderneiros e inconsequentes (o jornal Folha de S.Paulo chegou a pregar em seu editorial uma postura mais aguerrida da Polícia Militar contra certos “grupelhos”) -, deram lugar a um discurso cínico de revolta difusa “contra tudo e todos”. Mas que, contraditoriamente, buscavam atingir um alvo: o PT e seus governantes. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e a presidenta Dilma sofreram derrotas políticas nesse sentido.
De certo modo, as vaias endereçadas à Dilma, no dia 15 de junho, juntaram-se a um descontentamento geral, obscuro e irrestrito. Entretanto, a partir de um olhar mais cirúrgico, percebe-se que setores críticos a partidos políticos, sindicatos etc. portaram-se num misto de histeria e chilique desmesurado, na tentativa de criar um clima de insustentabilidade democrática.
Estamos em julho. E já se nota uma diluição desse processo. Porém, alguns baques foram sentidos pelos políticos mandatários. A popularidade da presidenta caiu substancialmente (segundo os institutos de pesquisa Datafolha e MDA). A aprovação de prefeitos e governadores – aliados ou não – também desabou.
A disputa pela conquista da narrativa do processo histórico passou a ser articulada, com força, na absorção das vaias de setores burgueses da sociedade (no seu caráter mais clássico). O dia de lutas (11 de julho), manifestação organizada por diversos grupos e entidades dos trabalhadores, sofreu um revês, já que seu discurso de mudança ou reivindicação não se ancorava no grito “rouco” de rua de jovens da classe média. Assim, os protestos de junho, no geral, abarcaram desde a pauta do agendamento político até a propulsão de uma ideia torta de país; simbolicamente pelos gestos incontidos contra a política, na veia publicitária do gigante acordado. E, no sentido prático, com a definição de novos rumos na agenda de votação do Congresso Nacional (a votação que derrubou a famigerada PEC 37 é um exemplo disso). Ao mesmo tempo, os sentimentos moralistas, como o combate à corrupção, aliaram-se a uma participação que descambava para o fascismo desmedido, em um ambiente, com ares de cinismo, próximo às micaretas. Em Bauru, presenciei trios elétricos de axé music cintilando a “revolução” moralista e mascarada.
A partir desse cenário confuso e conflitante, o paradoxo de placas como “queremos saúde padrão FIFA” resvalava-se na ocupação dos estádios de futebol reformados e inaugurados para a Copa das Confederações: higienizados, assépticos, “sem geral”, “sem povo”. Ocupados por gente branca em um país miscigenado. Nesse clima de aversão ao furor e à tensão popular, os torcedores das arenas se entrosaram com as aspirações mais reacionárias das passeatas Brasil afora. Ou seja, a vaia à presidenta antecipou, sem nenhuma relação de causa e efeito, um ambiente de chilique inconsequente.
Os estádios de futebol do padrão FIFA contribuem para isso. Na descaracterização violenta das identidades dos estádios brasileiros, a máxima do sociólogo Gabriel Cohn tornou-se inverossímil: “intelectual que não suja a bunda nas arquibancadas dos estádios de futebol não sabe o que é o Brasil”. Impossível sujar o traseiro nestes novos estádios.
O que eu quero dizer é que há uma coxinização da vida cotidiana pelo discurso mimado da revolta. Vaia de coxinha não vale. Ou não poderia valer. Porém, a ocupação da rua, e dos estádios, não é privilégio das lutas mais orgânicas. Como se portar, então, diante dos coxinha de plantão que exigem a volta do regime militar, o achincalhamento da política, a incorporação de falas corporativistas? Modelo mais rotundo, nesse sentido, são os médicos coxinha que se opõem à contratação de colegas estrangeiros, para atuarem em regiões pobres do país, e ao Mais Médicos, incentivo governamental a preencher lacunas na distribuição do trabalho de profissionais da saúde em áreas afastadas ou pouco procuradas nos grandes centros. Revestidos de um corporativismo opulento, desconsideram alguns dados importantíssimos da realidade brasileira. Paulo Moreira Leite, em artigo recente publicado no site da revista Isto é, pontuou: “O veneno destilado no Brasil teve origem na oposição e também envolvia o papel do Estado. Diante das propostas de contratar milhares de médicos para levar aos pontos pobres do país, aqueles onde a rede pública é menos que 10% da privada, a oposição reclama: ‘cadê os equipamentos’, ‘cadê os hospitais’. É muito veneno. Vamos combinar”.
A coxinização de médicos, manifestantes de classe média e setores da imprensa se antepõe, ao que se nota, à dureza dos processos sociais e de vida. O geógrafo Milton Santos dizia que a classe média brasileira não é ávida por direitos, mas, sim, por privilégios. Isso resume, muito, o comportamento dos coxinha nas ruas, nas arenas anódinas de futebol, no Credicard Hall e nas montagens inacreditáveis do facebook.
Os coxinha são uma praga. Estão em todos os lugares. Apropriam-se de fetiches massificados. Enredam-se em slogans como sustentabilidade (a despeito de sua real importância) e que tais – não à toa, a ex-senadora Marina Silva, idealizadora do partido-não-partido Rede e Sustentabilidade, é uma espécie de musa dos coxinha. Rubricam abaixo-assinados os mais despropositados como, por exemplo, “exigindo” que os beneficiários do Bolsa Família não votem. Entrosam-se com a “religiosidade de resultados” de Malafaias, Felicianos, Padres Fábios e outros tantos carismáticos e pentecostais coxinha. Nas barbas da periferia, os coxinha têm vez e voz no discurso machista e misógino do funk ostentação.
Não há, evidentemente, explicação simples para esse processo de ação e reação nas ruas. O ex-presidente Lula, em artigo publicado no New York Times, toca nessas questões da participação política contemporânea e na revalidação dos processos de lutas, por mais obscuras e difusas que sejam. Mas é difícil aguentar, diuturnamente, a postura oblíqua dos coxinha. Tenho a impressão de que a nova onda é deles. Surfarão nela. Vencerão. Na vaia à presidenta ou na irracionalidade insuportável que toma conta do Brasil, nos dias que correm, eles são protagonistas. Ou aparentam ser. Durmamos com um barulho desses.
Cláudio Coração é botucatuense. Leciona e escreve por aí.