“A única conduta aceitável para ela é esta esperteza cotidiana”
por Cláudio Coração*
Corte um – a providência
É difícil sonhar deste jeito, rumina. Sua família é sua posse. Valiosa propriedade. Gosta de se empenhar no futuro dos seus. Não que isso o salve da incerteza. Em geral, não acredita nas pessoas. Basta olhar seus movimentos. Rudes. Finge crer que sua vontade é um dever. Quase divino. Ao avistar meninos na esquina, solta fagulhas. Vê em grifes estrangeiras o estilo. Eis o seu gozo. Assimilar cacarecos ianques e usar gadgets. Não tolera “coisas” brasileiras. Porta-se como um temente. Reconhece as suas miudezas, as suas incoerências. Escuta valsas e rocks datados. Boleros de Aldir Blanc cantados por Elis, só em outros carnavais. Agora é um tolo. Algoz e vítima das atividades do lar repressor. Um anjo decaído. Pronto para o abate de uma existência orquestrada. Sente-se livre ao propagar o ódio. Por acreditar que o amor é o seu motor. Quase sempre veste a carapuça do “homem de bem”. “Bandido bom é bandido morto”. Cambaleia nas horas. É um “herói dos dias úteis”. Taciturno, boa-praça para os mais desavisados. Vaticina o horror nas orações diárias: contra toda a sorte de inimigos. Quer proteger sua prole dos párias. Tem devaneios. A Miami que admira não tem Tony Montana. Almeja limpar as sujeiras das ruas. Não sabe como. Ainda. No tilintar da rotina, arquiteta planos obsessivos, desumanos. Enquanto caminha, seu relógio toca o alarme da fé.
Corte dois: a exasperação
Não se suporta. Mesmo nos momentos mais cândidos. A única conduta aceitável para ela é esta esperteza cotidiana. Mas não se envolve em elucubrações. É emancipada nos juízos das falsas concessões. Pragmática. Sua neurose se abranda ou se intensifica ao sabor dos gestos e das palavras. Do outro. Firme com a ponta de lança do julgamento moral, a verve intelectual é a sua rendição. Inconstante, sabe que a ciência é o seu guarda-volumes. Ao ler Morin, Bourdieu entrosa-se, apruma-se. Como se visitasse gibis e almanaques. Dissimulada na medida certa. Imagina um país livre da apologia vulgar. Tem pavor das reminiscências ensaiadas. Mas se apoia demasiadamente no tempo ido. Sua emoção é a descarga de energia. Sua felicidade. Vive a resmungar, por aí, sobre a estação passada, sobre as ideias caras em falta. Odeia amar as interdições. A ansiedade da boa ação é o seu último quinhão. A família é um purgatório por onde escorrem tensões e traumas na pia. Não poucos. Enquanto caminha, seu coração palpita timidamente um triste canto.
Corte três: o orgulho
Sabe que o mundo é belo quando prático. Gosta dos grandes centros. Gente descolada por perto, deseja. Amante da literatura norte-americana divaga nas apreensões dos universos de Faulkner, Steinbeck, Fitzgerald. Suave é a noite. E as aventuras labirínticas. Em tantas ocasiões, diz estar cansada de bater e ninguém abrir. Voltar para o interior?! Sua empáfia começa a dar sinais de esgotamento. A cidade grande, por ora, esmiúça, adultera os corações. Pequena diante dos arranha-céus. Frágil na epifania. Sua aspereza se dissipa ante o veneno das ruas e dos carros. Nem o show de Cat Power a acalanta. Nem o de Iggy Pop. Prende-se a um dilema hamletiano. Retornar à besta vida ou embarcar para a hostil Europa. A escolha é a própria hesitação. É o que parece. Ama o país incoerentemente. Ama sem querer amar. Degenerescência. Isso não a diminui. É importante frisar que, para ela, a indiferença é instrumento de paixão. Blasé. Cercada de amigos frívolos, sua vida se resume a voos de galinha. Seu amor aparece em tortos desarranjos. Como um fantasma. É tão cedo para prever um desconsolo. E é tão tarde, talvez, para recuar. Enquanto caminha, lembra-se de uma piada mal ajambrada que escutou no trabalho e ri nervosamente.
*Cláudio Coração é botucatuense e, atualmente, leciona sobre Comunicação Social na Universidade Federal de Ouro Preto (MG)