Publicitárias denunciam abusos de que são vítimas no trabalho e afirmam: os anúncios que indignam as mulheres nascem da cultura interna das próprias agências
via Agência Pública
“Não existem muitos casos de propagandas machistas no Brasil porque a publicidade brasileira é madura para perceber que a pior coisa que pode fazer é irritar o consumidor, seja ele mulher, homem ou criança. De qualquer forma, nós não temos uma declaração oficial a respeito desse assunto”. Essa foi a resposta da assessoria de imprensa do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), por telefone, à pergunta da Pública referente a algumas peças publicitárias lançadas no Carnaval e no Dia Internacional da Mulher, rechaçadas nas redes sociais por serem consideradas machistas – algumas inclusive retiradas de circulação. O Conar é um órgão de autorregulamentação das agências publicitárias, encarregado de receber denúncias de consumidores ou órgãos públicos e julgar se a propaganda deve ser tirada do ar e a agência eventualmente advertida. Das 18 denúncias de machismo em propaganda recebidas em 2014 (pesquisadas pela Pública no site do Conselho), 17 foram arquivadas, e apenas uma, da cerveja Conti, que dizia em sua página do Facebook “tenho medo de ir no bar pedir uma rodada e o garçom trazer minha ex” terminou com um pedido de suspensão e advertência da agência que realizou a campanha.
Outra campanha, do site de classificados bomnegócio.com, em que o Compadre Washington chamava uma mulher de “Vem ordinária”, que havia recebido pedido de suspensão, foi posteriormente reavaliada e o processo arquivado. As justificativas das decisões geralmente são de que as propagandas não são machistas mas sim humorísticas, como esta de março de 2014, referente a um spot de rádio da Itaipava: “Uma consumidora paulistana entendeu haver preconceito machista em spot de rádio da cerveja Itaipava. A anunciante e sua agência alegam o caráter evidentemente humorístico da peça publicitária. O relator aceitou esse ponto de vista e recomendou o arquivamento, voto aceito por unanimidade”.
As entrevistas também foram negadas pela agência F/Nazca Saatchi & Saatchi, responsável pela campanha da Skol para o Carnaval que teve que mudar a campanha depois que seus cartazes de “Deixei o não em casa” foram pichados com a frase complementar “mas trouxe o nunca” por duas garotas de São Paulo, e pela Ajinomoto do Brasil, fabricante da Sopa Vono, que teve sua fanpage no Facebook invadida por reclamações por peças consideradas machistas e também teve de tirá-las do ar. Via assessoria de imprensa a F/Nazca Saatchi & Saatchi e a Ajinomoto disseram que lamentam o ocorrido, respeitam as mulheres, que o objetivo da peça era humorístico e que estão repensando suas estratégias.
“Antes de falarmos sobre publicidade machista, temos que falar sobre machismo na publicidade” argumenta a diretora de criação Thaís Fabris, idealizadora do projeto 65|10 que discute o papel da mulher na publicidade. “O ‘65’ vem do dado de uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão que aponta que 65% das mulheres brasileiras não se identificam com a publicidade e com a forma com que são retratadas pela publicidade. O número ‘10’ é de uma pesquisa que nós fizemos que mostrou que apenas 10% dos criativos dentro das agências brasileiras são mulheres. E é na criação que as campanhas são feitas”.
Veja aqui imagens encontradas da festa da agência África em 2010.
Como diretora de criação, Thaís diz que, para fazer parte do grupo, muitas mulheres também acabam se masculinizando e até reproduzindo esse machismo. “É a maneira que encontram de preservar suas carreiras. Emudecem e não questionam ou entram na lógica e reproduzem”.
Não existem dados oficiais sobre diferenças de salários e cargos na publicidade brasileira separados por gênero mas no geral, segundo o PNAD de 2013, mulheres recebiam cerca de 26,5% a menos que homens na mesma posição. E segundo a pesquisa A mulher publicitária, preconceito e espaço profissional: estudo sobre a atuação de mulheres na área de criação em agências de comunicação em Curitiba, realizada em 2009, as mulheres correspondiam a menos de 20% nas áreas de criação. Em sua conclusão, o estudo aponta que muitas vezes as próprias mulheres contavam casos de discriminação sem entender como tal: “Percebe-se, assim, que a discriminação por parte do gênero masculino em relação ao feminino está tão enraizada na profissão, que acaba sendo acatada como uma manifestação sociocultural natural para as mulheres que trabalham dentro desses ambientes extremamente machistas. O discurso dos indivíduos que atuam na área, afirmando que existem mulheres que não servem para essa profissão por serem muito frágeis e fracas, é típico da construção hierárquica desigual da sociedade, que surge de seus tempos mais remotos.”
Existe quase uma ordem natural de colocar as mulheres nas áreas de atendimento e gerenciamento de projeto do que em qualquer outra. existe uma série de piadas extremamente machistas e misóginas que brincamcom essa relação de mulher sempre virar atendimento. (F.B, 32)
Recomendações internacionais
A pesquisa Representações das mulheres nas propagandas na TV, citada pela Thaís no começo da da matéria, foi publicada em 2013 pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Data Popular. De acordo com os dados obtidos, 84% dos entrevistados (homens e mulheres de todo o país) reconhecem que o corpo da mulher é usado para venda de produtos; 58% entendem que as propagandas na TV mostram a mulher como objeto sexual e – ao contrário do que acredita o Conar – 70% defendem a punição aos responsáveis por propagandas que mostram a mulher de modo ofensivo.
O Brasil é signatário da Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em 1995 em Pequim, que determina: “incentivar a participação das mulheres na elaboração de diretrizes profissionais e códigos de conduta ou outros mecanismos apropriados de auto-regulação, para promover uma imagem equilibrada e não estereotipada das mulheres na mídia; incentivar a criação de grupos de vigilância que possam monitorar os meios de comunicação e com eles realizar consultas, a fim de garantir que as necessidades e preocupações das mulheres estejam apropriadamente refletidas neles; promover uma imagem equilibrada e não estereotipada da mulher nos meios de comunicação”.
Mas depois disso, o país já recebeu recomendações internacionais para que preste mais atenção à forma como retrata a mulher em suas propagandas. Em 2003, o relatório do comitê da Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher do qual o Brasil é signatário) afirmava: “O Comitê está preocupado com a evidente persistência de visões conservadoras e estereotipadas, comportamentos e imagens sobre o papel e responsabilidades de mulheres e homens, os quais reforçam um “status” inferior das mulheres em todas as esferas da vida”. O relatório também recomendava que fossem criados programas para fomentar “a eliminação de estereótipos associados aos papéis tradicionais na família, no trabalho e na sociedade em geral”; e que os meios de comunicação (mídia) “fossem encorajados a projetar uma imagem positiva das mulheres e da igualdade no ‘status’ e nas responsabilidades de mulheres e homens, nas esferas pública e privada”.
O diretor da agência onde eu trabalhava diversas vezes insinuava que eu (por ser lésbica) queria ficar com as meninas da equipe dele. Quando tinha Happy Hour da agência, ele me fazia perguntas constrangedoras a respeito da minha vida pessoal e ainda ficava perguntando o que eu gostaria de fazer com as meninas da equipe dele se elas me dessem bola. Isso tudo é pouco. Diversas vezes esse diretor insinuou coisas pra mim, fazia aqueles “elogios” desconfortáveis sobre roupa, corpo, olhar. Dizia que se eu conhecesse como ele era, eu não seria lésbica. (P.R, 29)
De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará – de 1994 – o Brasil tem cinco formas de violência contra a mulher tipificadas: sexual, física, moral, psicológica e econômica, explica Raquel Marques, diretora da ONG Artemis. “Na Venezuela, a mesma convenção deu origem a uma lei com 14 tipificações de violência contra a mulher, inclusive a midiática. Porque você transmitir mensagens que reforcem estereótipos ou reforcem violência causa dano coletivo e o dano coletivo vem da naturalização dos comportamentos. A publicidade, mais do que nenhum outro veículo traz expressões que se tornam até parte do nosso vocabulário, jingles, chavões, é muito poderoso”.
Cansei de contar quantas infinitas vezes tive que dizer em voz alta para os diretores e supervisores o quanto eles estavam sendo machistas com determinadas peças. As vezes, nem só nas campanhas mas também na conversinha de cozinha. Por eu sempre me posicionar firmemente, eles me chamavam de feminazi e sempre que podiam, faziam piadas machistas perto de mim para me ver reagir. (T.B. 29)
E essa violência pode ser incentivada pela publicidade como observa Thaís Fabris. “Nós publicitários temos que perceber a responsabilidade que temos enquanto criadores de comunicação em massa. Não é porque uma coisa funciona, que as pessoas compram, que a gente pode reforçar estes estereótipos muito perigosos. Quando a gente fala em ‘mulher objeto’, essa mulher está lá na outra ponta, com o homem se achando dono dela e acreditando que se aquele brinquedo não funcionar do jeito que ele quer, ele pode quebrar. E você tem uma mulher morrendo a cada 90 minutos no Brasil. A gente está sim reforçando e habilitando esse comportamento. A propaganda que pergunta “você está pronta pra ir pra praia?” tem responsabilidade sobre a mulher que está morrendo em mesa de cirurgia ou morrendo de anorexia! A propaganda é feita pra isso, pra influenciar decisões e gerar a compra de produtos. Mas eu já disse e repito: antes de falar sobre publicidade machista, precisamos falar sobre machismo na publicidade. Porque ela existe, é real, acontece todos os dias dentro das agências”.
Os meninos de uma agência na qual trabalhei encontraram com uma modelo famosa numa padaria e voltaram dizendo o quanto ela era gostosa, “rabuda” entre outros adjetivos horríveis. Senti-me enojada com os comentários, a ponto de não aguentar e rebater dizendo que mulher não era pedaço de carne. Isso foi suficiente para que todos se unissem contra mim e começassem então um massacre machista. Tudo o que eu falava era contestado. Todas as opiniões que eu dava eram minimizadas. Todos os meus trabalhos eram “meia-boca”. Acho que minha estadia nessa agência, em especial, foi uma das piores experiências profissionais que tive na minha vida. (C.C, 34)