Trata-se da história de uma menina que, com menos de 15 anos de idade, casou-se com um homem bem mais velho, de 40 anos
por Nelson Letras*
A vizinhança não para de comentar: “uma moça abandonou o marido para se tornar prostituta”. Alguns dizem que ela um dia vai ter o que merece; outros pensam no marido, que deve estar sofrendo e cheio de vergonha “deve ser um pobre coitado”; e há aqueles que não veem a hora de conhecer a tal menina bonita para pagar por uma noite de prazer – “talvez nem pagar, pois deve ser uma daquelas que falam que não querem, mas no fundo é o que mais querem, então se for à força, por mais que ela esbraveje, no fundo ela está querendo, além disso, ela merece mesmo!”.
Esses pensamentos demonstram um preconceito comum no ser humano. Preconceito no sentido de fazer um conceito, uma opinião, um sentimento sem exame crítico sobre uma situação, uma pessoa; ou melhor, duas. Essa vizinhança vive “hoje” na sociedade, mas o ocorrido com a tal moça já tem mais de um século. Trata-se da história de uma menina que, com menos de 15 anos de idade, casou-se com um homem bem mais velho, de 40 anos, carreiro influente da região, morador de Avaré. A menina era muito bela, e isso provocava um ciúme doentio no importante dono dos carros de boi que, na época, seguiam carregados de sacas de café. Francisco Carvalho Bastos era um homem violento e, tomado de ciúme pela beleza da esposa, maltratou-a por cinco anos, “batia na pobre mulher com a vara de ferrão de bater no gado”. Não suportando mais aquela vida, a jovem fugiu com a ajuda de um escravo “propriedade” do marido. Montada em um cavalo, a garota saiu de Avaré com destino à casa de uma tia em Botucatu, para depois continuar a fuga a um lugar mais distante. Sua tia, mulher que outrora fora prostituta, conseguiu que ela ficasse num Cabaré, o prostíbulo da Fortunata, na esquina, cruzamento, da rua Amando de Barros com a Campos Salles, onde terminava a cidade.
Enlouquecido, o homem vai à busca de “sua mulher/propriedade”. Chegando a Botucatu, ele, durante um mês, tenta levá-la de volta ao sofrimento, entretanto dona Fortunata e cidadãos botucatuenses o impedem de tal ato. O carreiro não pensa duas vezes, contrata dois jagunços e arma uma armadilha para a garota. Numa área mais isolada, enquanto os dois a seguram, ele lhe tira a roupa, e com uma faca a esquarteja aos poucos, cortando pedaços da orelha, dos lábios, do nariz, da bochecha, do seio, os dedos… até a morte…
Pouco tempo depois, o assassino foi absolvido, ao alegar que sua ação deveu-se ao fato de ter sido traído.
Este mesmo – de acordo com a “justiça” – “homem/vítima” não viveu muito para contar sua perspectiva trágica da história. O influente homem traído teve uma capela construída em sua homenagem no local em que morreu, num acidente, ao ser cortado pelas rodas de um carro de boi carregado com sacas e sacas de café. A garota que foi violentamente assassinada também teve uma capela construída em sua homenagem; isso alguns anos depois. Todavia não por ser uma pessoa influente na sociedade, e sim porque, segundo o relato de pessoas, por intermédio dela, milagres começaram a ocorrer. Aquela menina que teve sua vida tirada não no dia 21 de junho de 1885, mas já cinco anos antes, no momento em se casou com Francisco, hoje é considerada nacionalmente uma santa. Aquela mesma menina que, se tivesse sua história contada hoje entre a vizinhança, seria rechaçada pela sociedade.
Essa é a história de Anna Rosa e Chicuta, cuja dramaticidade foi imortalizada na voz da dupla sertaneja Tião Carreiro e Pardinho.
Mais de um século depois, nossa sociedade ainda possui muitas Annas Rosas e muitos Chicutas. A mulher continua sofrendo, sendo agredida, violentada, assassinada. Para se ter uma ideia melhor, ao se analisarem os dados sobre estupro – o número é espantoso -, fazendo-se uma média, apenas de casos registrados, a cada 12 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. A mulher continua sofrendo violência física (qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal), psicológica (agressões verbais, humilhações, ameaças, xingamentos, desqualificação, intimidação, manipulação, calúnia, privação da liberdade), sexual (qualquer ato sexual a que a vítima é submetida contra sua vontade, como estupro ou tentativa de estupro, atos libidinosos, abuso sexual, sedução e assédio sexual), patrimonial (destruição de objetos pessoais, documentos, instrumentos ou outros pertences da mulher; transferência de bens para o agressor por coação ou indução ao erro), e moral (qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria).
Como bem disse a pensadora francesa do século XX Simone de Beauvoir (aquela da questão da prova do Enem): “Não se nasce mulher, torna-se mulher” – ou seja, a mulher não é o que a sociedade diz ela ser, ela não é um ser humano que deve ser submisso ao homem, que deve se ater apenas a cozinhar, lavar, passar e a cuidar dos filhos, que deve aceitar humilhações, que deve sofrer calada. Não, a mulher torna-se mulher, conhecendo e colocando em prática sua identidade, sua personalidade; e vivendo sua vida sem diferenças em relação ao homem. Talvez seja difícil para muitos homens entenderem que são opressores e que fazem da mulher um ser oprimido, pois, aproveitando as palavras de outro pensador, mas brasileiro, o educador Paulo Freire: “Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação?”. Que esse aprisionamento ideológico machista seja cortado pela roda de um carro de boi, e que a igualdade de gêneros resplandeça assim como as velas acendidas na capela de Anna Rosa.
* Professor Nelson é formado pela Unesp de Assis