Das antas e cangurus

O “jeitinho” é um aparentado desse milagre banalizado, corriqueiro, tão caro e útil aos brasileiros de outrora.

Jean Marcel Carvalho França*

Em tempos de Olimpíadas, parece que estamos descobrindo rapidamente que o famigerado “jeitinho brasileiro” não vale grande coisa, pior, que tão cantada virtude nacional talvez não passe de mais um dos autoenganos que, malgrado as evidências, teimosamente insistimos em cultivar. O “jeitinho” é uma espécie de primo laico, e um pouco desencantado, do milagre cotidiano, que tanto seduzia os homens e mulheres –– brancos, negros, índios e mestiços –– do Brasil colonial. Lá, naquele mundo inóspito e carola, acreditava-se piamente que Deus, os santos e um punhado de outros representantes do criador estavam sempre prontos, cotidianamente prontos, a intervir por tudo e por nada a nosso favor: da cura de uma doença de pele à recuperação de um escravo fugido, da prosperidade de uma colheita ao parente que atraca no porto em segurança, da construção de uma igreja ao encaminhamento de um filho para o convento. Tudo o que caminhava a contento nesse mundo de desordem e agruras era graça de Deus e de seus emissários, que não descuidavam dos colonos, não os deixavam entregues à própria sorte, à própria competência.

O “jeitinho” é um aparentado desse milagre banalizado, corriqueiro, tão caro e útil aos brasileiros de outrora. É um milagre sem Deus: continua-se a esperar pouco da competência e autonomia daquele que age, no entanto, não são os anjos ou Santa Úrsula Onze Mil Virgens que vêm em socorro do desamparado e imprevidente, é a organização espontânea das coisas que agora conspira a seu favor. Por mais lambanças que se faça, na hora H, intervenções mínimas e inspiradas, auxiliadas por um acaso sempre favorável, farão com que tudo, ao fim e ao cabo, dê certo.

Do mesmo modo que o milagre colonial –– que parece não ter aliviado muito o cotidiano miserável da maioria dos colonos e dos seus escravos ––, a eficácia do “jeitinho” é duvidosa, mas nunca contestável. É verdade que temos sempre a sensação de que determinado produto final poderia ter saído melhor ou de que tal problema merecia uma solução mais racional e duradoura. Isso, contudo, importa pouco, pois, como gostamos de repetir aos incrédulos e precavidos: no “final, tudo acaba bem”, damos solução para tudo. Tal crença tem seu preço: engolir porcarias e fazer vista grossa para a incompetência. Aturamos calados e contentes o conjunto habitacional sem esgoto e sem água encanada que o usuário tem de consertar por sua conta quando se muda; o terminal do aeroporto que se parece com um galpão e alaga logo após ser inaugurado; o prédio público que precisa ser reformado seis meses depois de construído; os asfaltos vagabundos das estradas que “derretem” com pouco uso; a saúde com tapa buracos, sujeita ao “mais isto”, “mais aquilo”; enfim, engolimos sapos e sapos, toleramos mil desaforos, para poder orgulhosamente dizer no final: não falei? O brasileiro acaba dando um jeitinho em tudo!

O problema aparece quando sujeitamos os resultados do “jeitinho” à visada do estrangeiro, que não tem qualquer compromisso com a manutenção do mito de que “tudo, graças ao jogo de cintura do brasileiro, vai dar certo no final”. Quando antas e cangurus se encontram, as pias entopem, o alarme de incêndio não funciona, o trânsito não flui, a violência não diminui, o esgoto continua a correr a céu aberto, as obras recém inauguradas desabam, os cuidados ambientais são pífios e as cidades maravilhosas que tanto orgulham os brasileiros deixam de ser tão magníficas.

Há quem, lançando mão do que o grande Machado de Assis denominava “janela da consciência”, apele nessas horas para a crítica ao tal “complexo de vira-lata”: não devemos negar o que somos, não podemos deixar os gringos fazerem com que nos sintamos inferiores, apartemos de nós o sentimento de pequenez e afirmemos orgulhosamente a singularidade do brasileiro, e por aí vai… O momento, contudo, depois de mais de uma década de patriotada histérica e parvoíce nativista, anda menos propenso a janelas da consciência e mais afeito à autocrítica, afinal, como disse o simpático presidente do COI, o Brasil vive uma crise sem precedentes. Mergulhados em tamanho mal-estar, talvez, somente talvez –– os povos não gostam de sacrificar as suas crenças, por mais burras e ineficientes que sejam ––, enxerguemos o verdadeiro legado dos Jogos Olímpicos, um legado pedagógico, quase uma lição: o país não precisa de “jeitinho”, mas de racionalidade e competência.

*Jean Marcel Carvalho França é professor Titular de História do Brasil da Unesp de Franca.          

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