Civilização do homem sentado
As conseqüências negativas da postura ortodoxa são várias, passando pelas hemorróidas e pelo câncer de próstata até chegar à obesidade
por José Roberto Fernandes Castilho*
Faz uns 20 anos que o controle remoto da TV se popularizou e isto foi uma grande novidade porque a pessoa não precisava mais levantar-se da cadeira para mudar o canal da TV. Na época, chegou-se até a dizer que a família Marinho iria combater a produção destes equipamentos no Brasil para não perder a hegemonia da Globo. Hoje, a pessoa não precisa movimentar o corpo para fazer quase tudo: não precisa sair do carro para abrir o portão de casa, não precisa pular da cama para pegar correspondência ou ler o jornal, não precisa sequer sair de casa para assistir aula na faculdade por força da videoconferência e nem para fazer prova (já foi criada a teleprova).
Numa escala maior, a pessoa não precisa se deslocar de casa nem mesmo para trabalhar porque já existe, com intensidade cada vez maior, a figura do teletrabalho mediante o qual o trabalhador exerce suas atividades no computador, em qualquer lugar que esteja. E a legislação trabalhista já incorporou a nova forma de prestação do trabalho ao estabelecer, desde 2011, que “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego”.
O imobilismo, o sedentarismo, portanto, é a regra. Certeiro em suas análises, mesmo que lá não muito organizadas, Gilberto Freyre já dizia, em 1967, que vivemos na civilização do homem sentado. Num curiosíssimo livro sobre a sociologia da Medicina, Freyre observa que a nossa é uma civilização “excessivamente sedentária, pelo fato de obrigar muitos dos seus participantes a trabalhos, devoções e recreações sedentárias, muitas delas com esses participantes sentados em cadeiras de vários feitios, durante horas a fio”. Além disso, esta civilização desaprova posturas de trabalho ou de repouso “que se afastem da postura consagrada como ortodoxa, de homem sentado, à europeia ou à anglo-americana, como sejam a postura da pessoa reclinada em divã, em tapete, em esteira, ou de pernas cruzadas sobre coxins ou tapetes, para conversa, refeições, trabalho, convivência”.
Apesar disso, tais posturas podem ser higienicamente superiores à do homem sentado. Os cidadãos romanos passavam boa parte da vida reclinados em leitos na sala de jantar (triclinium) – comendo com as mãos, como mostra um livro recente (“Tudo sobre a casa”, de Anatxu Zabalbeascoa). Neste sentido, porque razão, por exemplo, não poderia o juiz receber as partes para audiência – que é gravada – confortavelmente sentado num tapete? Ou o presidente numa reunião do ministério acomodado em almofada? Será que isto retiraria a seriedade do ato?
As conseqüências negativas da postura ortodoxa são várias, passando pelas hemorróidas e pelo câncer de próstata até chegar à obesidade com os diversos males que a acompanham. Porém uma conseqüência específica do sedentarismo são as academias de ginástica, que proliferam nas cidades como as igrejas. Os índios (ou os “não civilizados”, como diz Freyre) não precisavam de academia de ginástica porque a atividade física fazia parte integrante da sua vida diária. Não é o que ocorre hoje em dia. As academias são a expressão visível da civilização sedentária, que não se movimenta e, pior, nem sabe como se movimentar. Claro que elas poderiam ser substituídas por atividades de rua como corrida, caminhada e alongamento. Mas acontece que o problema do sedentarismo é tão grave que as pessoas vão para as academias aprender a se movimentar.
Não é à toa, voltando a Freyre, que uma das imagens mais fortes no imaginário popular seja a de São Jorge a cavalo, dominando o dragão. Pode-se ver o mesmo em cartazes de filmes como o Rambo e outros vingadores: a imagem é de alguém em movimento de força exatamente porque isto é desejado – e não a passividade da cadeira, que se tem na realidade. Talvez não haja um herói cuja imagem mostre-o sentado na cadeira. Há o “Pensador” de Rodin, mas neste caso o corpo está contorcido a demonstrar como pensar é difícil. Conta a lenda que, em 1938, o Ministro Gustavo Capanema rejeitou os esboços da escultura do “homem brasileiro” feitos pelo grande Ernesto de Fiore para a sede do Ministério da Educação e Saúde (MES) porque o mostravam sentado e não altivo, em marcha, como se queria. O artista, então, refugiou-se em Prudente, onde teria parentes, para superar o trauma.
Na verdade, movimentar-se é algo tão difícil, nos tempos em que vivemos, que, por falta de bons jogadores, os times de futebol estão desaparecendo e o próprio futebol brasileiro está sumindo, o que a queda de público nos estádios reflete bem. No último Paulistão, por exemplo, mais da metade dos jogos teve público inferior a 5 mil pagantes. É que as crianças estão sentadas diante do computador jogando CS ou Warcraft enquanto os adultos – também sentados – veem Guerra dos Tronos na TV, não por acaso, jogos e filmes de ação intensa. Daí a vantagem do recente Pokémon sobre os outros games: ele obriga o jogador a sair de casa, ainda que, por isso, possa cair no buraco.