Ali Babá e os Miseráveis

Temos que mudar nossa política pública. Temos que sair do feudo.

por Daniel de Carvalho*

Era uma vez um jovem chamado Ali Babá. Numa de suas viagens, enquanto descansava, ouviu vozes. Subiu numa árvore e viu quarenta ladrões diante de uma enorme pedra. Um deles adiantou-se e gritou: ”Abre-te Sésamo!” A enorme pedra se moveu, mostrando a entrada de uma caverna, os ladrões entraram e a pedra fechou-se. Quando os ladrões saíram, Ali Babá resolveu experimentar e gritou para a pedra: ”Abre-te Sésamo!”. A enorme pedra se abriu e ele entrou na caverna. Viu um imenso tesouro, carregou o que pôde no seu cavalo e partiu em direção ao palácio para pedir a filha do sultão em casamento. Quando o sultão viu o dote, aceitou imediatamente. O conto faz parte do ‘Livro das Mil e uma noites’, de 1706, e nela há a morte de seu irmão, assassinato de todos os ladrões que buscam se vingar do ladrão e termina com um final feliz, Ali Babá bem casado e com posses, rico em seu castelo. Fim.

Daniel de Carvalho é publicitário
Daniel de Carvalho é publicitário

O livro foi publicado quase um século antes da Revolução Francesa, da era iluminada que colocou em cheque todos os arranjos abusivos e benefícios aos privilegiados que passaram a ser questionados por um povo faminto, traído e ignorado que só realizava o sonho de alcançar a riqueza e os privilégios da classe dominante se estes assim permitissem. Na revolução os privilégios feudais, aristocráticos e religiosos foram derretidos em fogo ardente e em cabeças rolando pelas praças. Radicais, as massas e os camponeses sustentaram a revolução, contra-atacada pelos que agora estavam acuados, pela organização resistente à miséria e criados na cultura do abandono e do ‘penso em você depois’.

O livro ‘Os Miseráveis’, de Vitor Hugo, conta a história de Jean Valjean em meio à Revolução Francesa, um homem que, muito pobre, se vê forçado a roubar pão para alimentar sua família. Pego no ato é preso pela polícia e entre tentativas de fuga para sua liberdade e preocupações com sua família, é detido encarcerado por 19 anos. Saiu também pobre, com o caráter mais abalado e agora perdido no mundo. Roubou novamente, desta vez de um bispo, seus castiçais e pratarias, mas, ao ser pego pela política, o homem disse que lhe havia dado as peças. Arrependido e agora com riquezas, lutou com sua força e tornou-se prefeito e empresário na Alemanha, conheceu pessoas sofridas e também maltratadas e as protegeu dos aristocratas cujos hábitos conhecia na carne. Adotou a filha de sua amada platônica, que anteriormente aceitara a semiescravidão a outra família, e avançou. Morreu também só após muita luta e vida cheia de desafios, sozinho após o casamento da filha, mas orgulhoso. Fim?

Não há finais felizes nessas histórias, mas há histórias e muitas histórias como estas que ainda estão sendo contadas. Há mulheres que são objetos de abusos ou submissão, seja pela tradição do dote dos sultões ou pela falta de recursos que a condicionou a condições análogas à escravidão. Temos a vingança aos ladrões como política de livrar-se do imoral que afeta nossos hábitos também imorais, como no ladrão que rouba ladrões, e habilidade do auxílio ao próximo como política assistencialista de caráter nobre presente no bispo que perdoou o miserável. Temos muito e muitos tem pouco. O coração deste conto está em uma elite que não abre mão de seus privilégios, em uma cultura de seus hábitos impostos como obrigação ao próximo – ‘deves ser rico, aparentar nobreza e serdes repleto de conquistas’ que muitos, propositadamente, nunca alcançarão.

Precisamos avançar da época dos sultões e evitar as tramas das revoluções. Vivemos em uma época como das Mil e Uma noites com medo de passarmos pelas histórias dOs Miseráveis, uma era de fantasia onde de fato não analisamos quanto os oligarcas e donos do poder tem feito para se sustentar e como tem iludido pela falha democracia que manuseia a todos nós com a fantasia de termos o poder político. Não roubaremos a amada roubando o preço que é pedido e também não podemos articular uma revolução com sangue e intolerância como a vista na queda da Bastilha da Revolução, mas não podemos ignorar que ladrão de pão e miseráveis de direitos e poder seguem sonhando em ter os mesmos luxos de quem nasceu no sultanato ou reféns das ordens de seus feudos. Os movimentos e o povo não aguentam mais corrupção e falhas de caráter e seguirão se fortalecendo para não cair no erro moral dos que combatem.

Eles não querem as joias dos sultões ou os castiçais do bispo, mas, principalmente, querem o respeito que nenhum dos antigos heróis teve. Terra, moradia, trabalho, alimentação, água potável, saúde, educação. Muitos ainda lutam por isso mas o atual sistema neoliberal dos sultões e chefes feudais condicionam seu acesso a terem dinheiro. Hoje vivemos uma democracia, uma república, outros tempos que precisamos aprender a defender. Este é um direito e não podemos mais condicionar o roubo ao acesso dos miseráveis aos privilégios. Temos que mudar nossa política pública. Temos que sair do feudo. Seguiremos juntos, todos, ninguém fica para trás.

*Daniel de Carvalho é publicitário e Secretário de Comunicação do PSOL 50 Botucatu.

**Os artigos assinados por colunistas não traduzem necessariamente a opinião do Notícias.Botucatu.

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