Sob o Efeito de Tirar o Homem do Céu

Conto de Juan Sardella
Nasceu em mil novecentos e cinquenta e seis, Adaão, um bebê feio e quebrado nas costas devido ao brusco nascimento de quem não queria nascer. Ainda na barriga da mãe implorava o aborto dando chutes e fazendo a moça vomitar de tempos em tempos. Pobre Adaão que teve de nascer.
Pobre Adaão que andava, agora com seus cinco anos, as costas enfaixadas recuperando-se do trauma de seu natal, pelo grande pasto com chumaços aqui e ali de mata virgem da fazenda de seu pai. Experimentando andar, experimentando o ar. A sensação de angústia por viver se amaciando pelo gosto da liberdade. Seus pais eram muito responsáveis e trabalhadores, porém, a bondade que havia em suas almas não exigia que a prole fosse assim também. Muitos filhos dos fazendeiros vizinhos já começavam a vida de trabalhar na terra assim que as pernas conseguissem carregar as pequenas carcaças deixando-lhes as mãos livres. Mas os pais de Adaão não. Tubulações completadas com sangue indígena recheavam seus corpos vermelhos e robustos, trazendo nelas a humildade, a espiritualidade e os anos de sofrimento de um povo que fora dizimado sem nenhuma justificativa e que agora era obrigado a viver conforme seu predador decidir. Enfim, eram bons pais e deixavam o filho descobrir a vida por si só.
Cinco anos depois, uma proposta vinda de um lugar longe fez os pais de Adaão pensarem. Um lugar, falavam para o pequeno, em que casas eram empilhadas umas nas outras e charretes que não eram movidas a cavalo andavam rápidas e ferozes por estradas de pedras. A proposta não veio a eles por mensageiro, veio indiretamente por ações e movimentos. Ações de seus vizinhos destruindo as próprias plantações e vendendo seus animais, e movimentos dos mesmos abandonando as casas e indo todos para aquele lugar novo que diziam melhorar a vida. Adaão, é claro, não entendia que tipo de melhora eles estavam falando, havia a pouco tempo melhorado completamente de suas costas e já não sentia mais o peso das faixas e curativos, melhorara também seu sentimento em relação à vida, sentia-se parte de algo, conectado com seu meio e com toda a vida em volta. É claro que também a curiosidade de um mundo novo e mágico veio-lhe à mente, portanto não foi difícil para ele aceitar a decisão de seus pais: abandonar sua vida e amigos e partir com eles de carroça em busca do novo mundo.
Sob efeito de tirar o homem do céu e trazê-lo ao inferno é possível pensar algumas coisas: Um novo trauma? Uma nova costela quebrada? Adaão já tinha trinta anos quando isso lhe veio à mente. Não tinha faixas nem talos nas costas, então por que esse peso? Perguntou-se deitado sozinho no chão de algo que chamavam de praça, e que era um plágio muito mal feito e equivocado do lugar de onde viera. Sob efeito de tirar o homem do céu é possível saber que a vida é feita de vários partos, vários traumas, várias costelas quebradas. O difícil é entender a proporção que isso alcançou e o rumo que tomou. Adaão nem se lembra mais de sua vida de antigamente. Do campo ele se lembra bem, do espaço verde físico, mas e o resto?
Adaão sentou-se cansado e solitário sob o escuro da noite que estava sendo estuprado pelas luzes que vinham de postes, sentou-se e voltou a deitar. Sentar quando se está deitado é meio passo para levantar e sair andando, mas para andar é preciso uma motivação e Adaão infelizmente não a tinha, então deitou e pegou no sono. Sonhou com o campo verde de sua infância, mas no lugar das árvores havia estátuas de vários homens brancos que vira pelas praças da cidade. Homens brancos, gordos, homenageados por suas contribuições para com o progresso. No sonho, agora cinco dessas estátuas vinham em sua direção, Adaão sentia um medo paralisante e suas pernas não o obedeciam. As estátuas com olhos azuis de fúria estavam bravas, ele sabia, pela sua cor de pele, e não adiantava nada se desculpar por ter nascido assim, nem se desculpar por ter nascido. O campo lindo que era seu sonho de repente se tornou um mar de fogo e agonia que o fez acordar e ver que seu corpo estava em chamas e rodeado por cinco jovens que riam, o fogo refletido em seus olhos. Adaão nem se desesperou. O que o esperava agora? Mais traumas? Mais partos? Estava um tanto calejado disso tudo e a sensação de ser queimado até que não era tão ruim, lhe tirava o frio e o confortava enquanto sentia seu ser sendo sugado de seu corpo. E sentia seu ser sendo sugado de seu corpo.
Conforme a morte vem chegando, uma lucidez começa a tomar conta de nós, talvez porque na morte somos só energia e não temos a limitação física de um cérebro, que só funciona com glândulas e sinapses. A lucidez da morte nos faz perceber que durante a vida tomamos os caminhos mais errados que apareceram, mas também não há tanta importância nisso, é como se uma pequena voz dissesse: “você errou aqui” e depois sumisse.
Sob o efeito de tirar o homem do céu e tirá-lo também de seu corpo é que podemos concluir que na verdade tudo não passa de baboseiras. Por que queremos sempre progredir sendo que o progresso nunca existiu de verdade? São apenas ilusões e baboseiras. São estátuas e estátuas de homens normais feitos do mesmo material gosmento que todos nós. São estátuas de pedra, marfim, bronze até de ouro, mas as imagens que representam já foram gosma também. E estátuas são corroídas pelo vento.

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