* Ruan Sales de Paula Pinheiro
É compreensível que a ideia de uma lei da internet no Brasil tenha gerado apreensão. A primeira lei de imprensa da República, de 1923, limitou significativamente a liberdade de expressão: vedava o anonimato de artigos, estabelecia a responsabilidade penal sucessiva (autor, editor, proprietário do órgão, dono da oficina ou estabelecimento gráfico responsável pela impressão, vendedores e distribuidores), garantia amplo direito de resposta, previa penas de prisão e multas em dinheiro para os ditos abusos de imprensa, que incluíam a publicação de segredos de Estado e ofensas ao presidente da República.
Apesar disso, seus defensores conseguiram espaço na própria imprensa. Logo em maio de 1922, assim que o senador Adolfo Gordo anunciou que divulgaria o projeto de lei, a Gazeta de Notícias do Rio prontamente se pôs a aplaudir a “oportuna e benéfica iniciativa”, ao mesmo tempo em que atacava os “pasquineiros”, colegas de imprensa retratados no artigo de primeira página da edição de 1º de julho de 1922 como “cainçalha hidrófoba, cujos ladridos são verdadeiros assaltos à honra dos homens de bem e até das famílias mais respeitáveis”. Para a Gazeta de Notícias, só deveriam se preocupar com a nova lei os órgãos de imprensa “sem escrúpulos e sem vergonha”.
A tramitação do projeto revelou ainda a supremacia do governo sobre a oposição no Congresso. No Senado, casa de origem da lei, Irineu Machado, Paulo Frontim, e Nilo Peçanha eram praticamente as únicas vozes de oposição ao texto. Outras quatro leis que regularam a atividade da Imprensa no país, em 1934, 1937, 1953 e 1967, seguiram a mesma linha de restrição à liberdade.
Um dos primeiros projetos para a regulamentação da internet no país, a “PL Azeredo”, também se preocuparia mais em vigiar e punir transgressões do que em garantir direitos e liberdades dos usuários. Mas felizmente, o Marco Civil, a lei da internet que prevaleceu, atende aos interesses dos cidadãos e também do mercado, é reconhecido como legislação moderna, fruto de um processo legislativo realmente democrático. Debatido na esfera pública antes de chegar ao Congresso, o marco civil volta a ser apreciado pelos cidadãos em discussões abertas, na internet, com a perspectiva de que os comentários orientem a futura regulamentação de disposições que já estão em vigor.
O princípio de neutralidade da rede, um dos pontos principais da legislação implica que todos os dados devem ser trafegados da mesma forma e navegados na mesma velocidade, sem segregação. Sendo assim, o mercado não poderá segregar serviços e comercializar pacotes de conteúdo, criando camarotes na rede. Não haverá, porém, neutralidade total. Nessa fase de regulamentação serão discutidas as exceções específicas à regra, com o objetivo de não inviabilizar serviços importantes como cirurgias à distância, por exemplo, que requerem a gestão da disponibilidade de banda.
Serão discutidos também princípios e regras relacionados à privacidade na rede, e também os detalhes sobre a guarda de registros dos usuários pelas empresas de internet. Vale lembrar que a lei brasileira alcançou repercussão internacional por conter uma resposta à vigilância dos EUA, cuja extensão foi revelada ao mundo pelos documentos ultrassecretos vazados por Edward Snowden, em 2013. E mais importante ainda é a afirmação que se faz da liberdade de expressão na rede .
Charges, vídeos, wikis e postagens em blogs têm potencial para ajudar a aumentar o conhecimento da população acerca de suas leis e instituições, na medida em que traduzam o oficialismo burocrático e a obscuridade de nossas instituições em uma linguagem de fato compreensível. Tais mensagens simples, que também tem o mérito de atingir parte da população não habituada à leitura de jornais e revistas, não se esgotam em sua transmissão uma vez que em torno delas sujeitos se manifestam e diálogos irrompem entre aqueles que transcendem a esfera privada e passam a se identificar como parte de uma esfera pública perante a qual os detentores do poder devem se legitimar.
Esse esclarecimento por meio de processos comunicativos democráticos em espaços públicos essencialmente abertos, como é a internet, deve ser compreendido como partida para o questionamento e subversão das relações de poder entre Estado e sociedade. Nesse processo a dominação patrimonialista perde legitimidade e a democracia avança. O marco civil, acima de tudo, garante que esse processo continue em curso.
Ruan Sales de Paula Pinheiro é pesquisador do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Unesp de Marília. Bolsista do CNPq.