Levi, químico de formação, deve à experiência em Auschwitz a descoberta da sua veia literária.
Sérgio Mauro e Claudia Fernanda*
Dias atrás, visitando Auschwitz, o papa Francisco pediu perdão a Deus, em nome da humanidade, pelos horrores ali cometidos. Em 31 de julho de 1987, há exatos 29 anos, morria em Turim, a sua cidade natal, Primo Levi, o famoso escritor italiano, de família judia, de Se questo è un uomo (É isto um homem?, na versão brasileira), o mais impressionante e o mais aprofundado, do ponto de vista filosófico-literário, relato de uma experiência pessoal no inferno do campo de extermínio nazista. Pairam ainda dúvidas sobre a causa da sua morte, vitimado por uma queda na escadaria do prédio onde morava. Sabe-se, porém, que o escritor passava por um período de depressão e que o teria levado ao suicídio, isto é, o escritor teria se jogado das escadas, provocando a própria morte. Vários livros sobre o escritor, entre as quais podemos citar o livro de Marco Belpoliti e obras recentes, como a do inglês Ian Thomson, com o título de Primo Levi, de 2007, sustentam a tese do suicídio, que nos parece bastante provável e plausível.
Levi, químico de formação, deve à experiência em Auschwitz a descoberta da sua veia literária. No entanto, em todos os seus escritos, nunca deixou de aproveitar os seus conhecimentos de química (e de alemão, conhecimentos estes que o salvaram da morte no campo). De grande observador dos elementos que cercam o homem e que o compõe, compondo também toda a natureza, ele passou, graças ao inferno vivenciado no campo, a conhecedor refinado da condição humana. De fato, em “É isto um homem?”, o escritor observa que, submetido à fome e a todo tipo de humilhação e tortura, o ser humano perde paulatinamente a própria humanidade, retornando à condição animal ancestral, toda fundamentada no instinto de sobrevivência, que leva até à dissolução de cada regra de convivência civil, baseada no respeito ao semelhante, e conquistada a duras penas ao longo da história humana.
Uma das passagens mais significativas da obra-prima de Levi é a referência feita pelo narrador-protagonista (e testemunho) à Divina Comédia e, sobretudo, ao canto XXVI do Inferno, em que Dante imagina a última viagem com a consequente morte de Ulisses. Homero, ao concluir a Odisseia, não nos conta como Ulisses morreu, afirmando apenas que ele se encontrava velho e cansado, após tantas viagens. No maravilhoso sincretismo entre o mundo pagão greco-romano e o mundo cristão da Divina Comédia, o poeta florentino ouve o relato que a alma do herói grego faz a Virgílio, o ilustre poeta romano que no Inferno e em grande parte do Purgatório funciona como personagem-guia do viajante Dante. Ulisses conta a sua última fantástica viagem em direção ao sul, ultrapassando o Estreito de Gibraltar, até à montanha do Purgatório, que no imaginário cristão medieval se encontrava em um ponto não preciso do hemisfério sul. Sendo águas proibidas por Deus a qualquer navegador, Ulisses conta, num misto de entusiasmo e de tristeza, como Deus o fez naufragar, junto com os seus navegantes. Pois bem, é justamente esta passagem da Comédia que serve de consolo e que leva a profundas reflexões do narrador sobre a condição humana em meio ao inferno do campo de extermínio.
A nosso ver, Levi percebe claramente que Dante, ao punir Ulisses, estava punindo na verdade o orgulho e a vaidade dos humanos, que acreditam no poder ilimitado do conhecimento e da ciência, ousando ultrapassar as barreiras impostas por Deus e, no caso de Auschwitz, da ética e do respeito devido ao semelhante. Levi constata tristemente que o delírio nazista foi corroborado por conhecimentos supostamente científicos, com a estreita colaboração de médicos e de cientistas.
Será que Primo Levi perdoou aos nazistas, assim como o papa que, em nome de todos, pediu a Deus perdão pelos pecados cometidos durante a assombrosa e horripilante aventura nazista nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial? Outro famoso escritor piemontês, Cesare Pavese, também suicida, assim como Levi (se aceitarmos a tese do suicídio), deixou ao morrer, num quarto de hotel de Turim, em 1950, uma carta que assim poderíamos traduzir literalmente: “perdoo a todos e a todos peço perdão”. Pavese quis associar, provavelmente, o perdão à compreensão, como o se o ato de perdoar não fosse simplesmente esquecer os males que nos fizeram, mas procurar compreendê-los, se possível profundamente. Levi, portanto, assim como Pavese, perdoou Auschwitz e o horror nazista porque procurou compreender as razões que levaram a humanidade à essa “insana viagem,” como “il folle volo” (“o louco voo) do Ulisses de Dante. A sua obra constitui, portanto, um convite à reflexão sobre o perigo de transformar qualquer fé, mesmo a fé na ciência humana, em fanatismos que não conhecem dúvidas, e que ainda hoje seduzem muitos seres humanos, convidando-os a pior forma de cegueira, a de quem não enxerga nada além do que supõe ser a única verdade possível, quase sempre defendida com a prepotência das armas.
*Sérgio Mauro e Claudia Fernanda de Campos Mauro são professores da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.