Hipocritamente destinamos seres humanos que se “desviaram” do caminho aparentemente correto a um cárcere que apenas pune
por Sérgio Mauro
Luigi Pirandello (1867-1936), grande escritor italiano, famoso em todo mundo pelas suas obras que dissecam impiedosamente a natureza do ser humano imerso na “prisão” social e existencial, põe na boca da personagem Mattia Pascal, do romance “O falecido Mattia Pascal”, a famosa frase, que se tornou quase proverbial: “se errar é próprio do homem, então não seria a justiça uma crueldade desumana?”.
No entanto, cerca de seis séculos antes de Pirandello, Dante Alighieri colocava na boca da personagem Marco Lombardo, cuja alma o poeta-viajante encontra no Purgatório, a peremptória reflexão: “As leis existem, mas quem a faz aplicar?”. Não há contradição ou choque de ideias entre os dois grandes escritores, como pode parecer inicialmente. Dante, que viveu em Florença no fim da Idade Média, desejava a dura aplicação das leis e a separação e convivência harmoniosa entre o Papa e o Príncipe para que a paz fosse assegurada, evitando o contínuo martírio provocado pela guerra entre as facções políticas.
Pirandello, por sua vez, filho de uma época de desencanto e de queda vertiginosa de valores, faz transparecer em muitos de seus escritos uma intensa piedade pelos seres humanos permanentemente escravos, ora das máscaras sociais, ora do fluxo vital que tudo arrasta e transforma. Na Divina Comédia, transparece a necessidade de aplicar as leis que regulamentam a convivência civil; nas reflexões que as personagens pirandellianas constantemente fazem, subjaz a necessária compreensão dos tantos motivos que levam os seres humanos à folia e ao crime.
Pois bem, seria preciso compreender profundamente as razões de todos os que, perante as leis, rotulamos de criminosos e trancafiamos nas prisões. Disto resulta quase sempre, sobretudo no Brasil, a superlotação dos presídios, pois são tantos os “monstros” criados cotidianamente pelas complicadíssimas relações sociais, aliados a fatores vários como as paixões inerentes aos seres humanos, que provocam ódio, intolerância e desprezo. Primeiramente criamos os “monstros” com nossa indiferença ou menosprezo, para depois despejá-los em horrendas edificações cercadas e vigiadas constantemente.
Na verdade, o que chamamos de “anormal” ou de “absurdo” é tão somente um espelho de nós mesmos que não queremos enxergar. Se um de nós ou um de nossos filhos tivessem sido submetidos às mesmas pressões dos supostos monstros que a mídia despeja diariamente em nossos lares, talvez a reação violenta fosse a mesma ou semelhante. É claro que seria preciso considerar também casos particulares, relacionados quase sempre a problemas mentais ou reações passionais de natureza bastante variada, mas, de modo geral, o que chamamos de comportamento absurdo ou anormal, aparentemente inexplicável, não surge do nada.
A recente rebelião no presídio de Fortaleza, por exemplo, que já provocou muitas mortes, ou rebeliões passadas como a do Carandiru, leva necessariamente à pergunta: até quando assistiremos inertes a rebeliões sangrentas nos cárceres brasileiros? Embora pareça impraticável, antes de condenar definitivamente um suposto criminoso a um cárcere que não apenas não vai “recuperá-lo” (do quê e para quê?), como também vai levá-lo a lidar com grupelhos consolidados no ambiente carcerário que possuem regras próprias (violentíssimas) de convivência, seria preciso investigar, caso a caso, os motivos que o levaram a infringir uma lei, criando uma espécie de histórico de cada criminoso, visando não apenas à punição, mas à identificação dos fatores que o levaram ao crime.
Excetuando-se os casos de alta periculosidade, depois da triagem inicial e antes do julgamento definitivo, os supostos criminosos seriam encaminhados para serviços sociais, dependendo da demanda de cada bairro ou região em que praticaram os crimes e naturalmente vigiados pelas forças policiais. A reeducação ou a reintegração seriam baseadas, portanto, não em atos de caridade, mas em tentativas de compreensão e acolhimento dos que momentaneamente abandonaram a convivência civilizada.
Aos presídios atuais seriam destinados apenas os elementos que comprovadamente representassem bastante perigo para a sociedade. Infelizmente, porém, parece muito mais cômodo e conveniente segregar os que não se adaptam, fingindo até que eles deixaram de existir. A estrutura atual carcerária brasileira (e não só no Brasil) é obsoleta e cruel.
Hipocritamente destinamos seres humanos que se “desviaram” do caminho aparentemente correto a um cárcere que apenas pune, sem compreender e sem reeducar. Antes de discutir, portanto, como acabar com a superlotação e como enfrentar as constantes rebeliões, a opinião pública deveria ser sensibilizada para a discussão de um problema que não quer enfrentar, preferindo delegar esta árdua e ingrata tarefa às forças da lei.
Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.