por Claudio Coração
Aos domingos a gente trepava num caminhão e ia jogar noutras vilas. Havia batucada na ida e na volta. Ou melhor, às vezes, voltávamos de cabeça baixa, maldizendo o juiz, campo que a gente não conhecia, tudo para justificar a derrota (Afinação da arte de chutar tampinhas).
Esse trecho, retirado do conto “Afinação da arte de chutar tampinhas”, do escritor e jornalista João Antônio (1937-1996), resume, em grande parte, um cenário dos meus tempos de infância. A memória costuma ser uma grande presepeira. Entretanto, alguns fios narrativos podem fazer sentido, se estendermos a sua lógica a certo momento e lugar. Botucatu. Cidade fria para um desavisado. Úmida para os reticentes de conveniência. Abriga um comportamento ordeiro. De certo modo, tedioso na conversa. Quase sempre enganoso na polidez.
Sou um botucatuense. Botucatuense típico. Talvez. Costumo vibrar os sons dos “tês” e “quês”, como arredar os “erres” e “esses”. Misturo a polidez enganosa com a resistência da negação da autoridade. Sou herdeiro da temática acabada do caipira tímido. Vivi na zona rural botucatuense até os 10 anos de idade, quando vim para a “terrível e gigantesca área urbana”. Suburbano, cresci em meio a códigos de malandragem. Mas sempre fui meio “otário”. Neguei, durante muito tempo, o “jeito rouco de ser” do caipira-suburbano.
Nunca fui um exímio jogador de futebol, é bom que se diga. No entanto, meu pai era um ponta-direita lépido. Admirava suas extravagâncias nos flancos do gramado, a tomar botinadas de zagueiros ávidos por sangue. Fazia a caravana dos gramados. Inca, Sete de Setembro, Brasil de Vila Maria, Campo do Vitoriana, Campão de Anhumas. Sabia que, ali, naqueles territórios, estava protegido da mesquinharia das missas de domingo. Meu pai me salvava das punições sacristãs. Além do futebol em si, havia um convívio quase cruel entre nós, os meninos da periferia botucatuense: provações, testes de obstinação em que o mais importante era parecer audaz. Portanto, sou dependente, também, desse código de ética da desconfiança matuta do peladeiro amador.
Meu pai tinha (ainda tem, na verdade) um caminhão. Transportador de leite. Com sessenta e tantos anos ainda carrega latões no lombo. Naqueles tempos, levava-nos aos arredores de Botucatu para fazermos duelos epopeicos com “gangues” inimigas. Éramos forasteiros mal-encarados. Ou, pelo menos, fazíamos um esforço para sê-lo. Sempre tinha uma briga engatinhada e fabricada de antemão. Havia também disputas em torno do sentimento de conquista de território. Botucatu se impunha grande, impávida, em cidades como Torre de Pedra, Pardinho, Anhembi, Bofete. Antonio Candido, quando escreveu “Parceiros do Rio Bonito”, jamais imaginaria que, tempo depois, naquela região emblemática do “gigante adormecido” e da vida caipira mais elementar, algumas questões se resolvessem com a arrogância típica do enfrentamento de jogos e truques fundamentalmente urbanos.
Entre a adolescência e a juventude, desfiz-me das relações futebolísticas, e a cidade passou a ter outro significado para mim. As tampinhas eram mais visíveis nas calçadas percorridas. Chutá-las, uma consequência. A noite embalada de algo etílico era mais envolvente. Meninas cobiçadas a passarem lânguidas no footing. Moças a desfilarem, rapazes a beber. Quanta força tinha a canção. Longe das artimanhas dos campos de futebol, o rock n roll e seu universo eram companheiros da minha timidez. Morar em Botucatu é um presente e um calvário, em certa medida. Mas naqueles anos 1980 e 1990, muita coisa parecia incompleta. É como se a cidade nos pedisse permissão para entoar cantos de saliva doce. Seguíamos à risca suas sugestões. Quantas noites soltas por uma terra que nos cobrava um preço alto. De condutas e ações destemidas da juventude ingênua. E que caminhos fazíamos. Do Lavapés ao Centro. Do Bairro Alto à Vila dos Lavradores. Do pontilhão da FEPASA pra cima era tudo Vila dos Lavradores. Ou simplesmente Bairro. Subir o Bairro noite adentro. Subir a pé a Major Mateus. Chegar à Leonardo Villas Boas e, finalmente, parar em algum fecha-nunca. Bar do Fogaça. Respirar. Bar do Campeão. Respirar melancolicamente empreitadas e desilusões. Engendrar otimismos do futuro que viria. Fora dali ou ali mesmo. Naquele lugar que era nosso. A derradeira da madrugada. Uma partida de sinuca. Em Botucatu.
Botucatu, repito, carrega essa aura caipira e católica de dialogar com as coisas do mundo. Minha memória fragmentada não permite achá-la – a tal aura – em sua fatal orientação. Meus amigos de outrora, tenho a sensação, são de outra galáxia. O provincianismo de Botucatu arrasta qualquer sonho, embora haja um sentido universal em sua cultura. Tenho-a impregnada na pele e solta nas lembranças recônditas, quando brincava com os filhos dos ferroviários na Estação César Neto. Por mais que atravesse fronteiras distantes, o ar de sujeito incomodado com o excesso me excede. Perdoem-me o trocadilho. É que carrego nas minhas costas esses sentimentos católicos de provação. Não sou crédulo, ressalvo. Não me tornei um estereótipo padrão. Porém, essa caipirice arremeda a alma e as escolhas. Obsessivo e perfeccionista. Mas, contemplativo e despojado. Não sou bom para auto-adjetivações. Meus pais são pessoas cuidadosas no trato com o cotidiano. Herdei esse espírito afável dos homens justos. Entretanto, sempre tive uma desconfiança da classe média. Consciência de classe, diria algum interlocutor marxista. Não sei. Tudo isso pode ser muito tolo. Essas são pistas, no mais, de um sentimento em que a idéia de viver pode ser muito perigosa. Embalam-me na minha vaidade despudorada, portanto, ecos de Guimarães Rosa e de “crimes e castigos” deslocados nesses típicos paulistas que conheço só de olhar o arquejar do corpo. Há certa confusão em colocar ordem na rememoração. Desandamos a grunhir para os demônios de nossa consciência. Mino Carta, no recente livro “Brasil”, diz: “Creio que o tempo não exista, tudo ocorre em concomitância sem nos darmos conta, só percebemos o átimo presente, imensurável, e já se tornou memória, e a isto chama-se vida”.
Minha memória me trai. Quase sempre. Sei que Botucatu virou um quadro na parede da retina. Sei também que as necessidades de sobrevivência fora de lá são intrínsecas à minha natureza tímida, rústica. As ruas e suas tampinhas (eis a cara metáfora joãoantoniana) me são valiosas. Por meio das instabilidades do enredo, questiono em qual gaveta guardo Botucatu.
Lembro-me da Fazenda do Afonso, com seus pastos em imensidão. Lembro-me dos fantasmas rondando minha cabeça à noite, naqueles vazios espaços campestres. Ainda rondam em meus sonhos. Lembro-me dos bancos rasgados da linha de ônibus Cohab-Vila Paulista. Lembro-me dos sentimentos de culpa nos enlaces e nas desilusões amorosas. Botucatu me fez um sujeito educado. E não sei, ou não saberia dizer, se isso é um elogio. Uma virtude.
Minha obsessão talvez seja fruto das efemérides, dos fragmentos desconexos do tempo. Ao lembrar das cenas oníricas me vêem a cabeça a serra botucatuense e suas reentrâncias perigosas de abismo, a igreja Sagrado Coração de Jesus e os sermões “socialistas” de Padre Zezinho, a Avenida Dom Lúcio embalada em seus códigos de futilidade, o inferninho escondido em Rubião Junior.
Continuo a chutar tampinhas. Como o narrador-personagem do conto de João Antônio. Botucatu martela em minha mente o estalo. Sei o preço que a vida cobra, a partir da herança fraterna que chamamos de identidade. Sei que a memória é uma ilha de edição, como dizia o poeta Waly Salomão (1943 – 2003). Se a cultura é algo que herdamos, continuo a subir aquelas ruas íngremes e estreitas do centro botucatuense em meus incansáveis périplos, por mais distante que esteja daqueles paralelepípedos. A cada retorno, a cada visita, Botucatu me insinua uma dança de livre pensar. O tempo passa mais devagar em Botucatu. Por isso, esqueço-me, muitas vezes, de lembrar. Que amo. Amo Botucatu.
Cláudio Coração é botucatuense. Leciona e escreve por aí.
Obs.: Agradeço, carinhosamente, ao Sérgio por ter me convidado a escrever neste espaço.
Aos domingos a gente trepava num caminhão e ia jogar noutras vilas. Havia batucada na ida e na volta. Ou melhor, às vezes, voltávamos de cabeça baixa, maldizendo o juiz, campo que a gente não conhecia, tudo para justificar a derrota (Afinação da arte de chutar tampinhas).
Esse trecho, retirado do conto “Afinação da arte de chutar tampinhas”, do escritor e jornalista João Antônio (1937-1996), resume, em grande parte, um cenário dos meus tempos de infância. A memória costuma ser uma grande presepeira. Entretanto, alguns fios narrativos podem fazer sentido, se estendermos a sua lógica a certo momento e lugar. Botucatu. Cidade fria para um desavisado. Úmida para os reticentes de conveniência. Abriga um comportamento ordeiro. De certo modo, tedioso na conversa. Quase sempre enganoso na polidez.
Sou um botucatuense. Botucatuense típico. Talvez. Costumo vibrar os sons dos “tês” e “quês”, como arredar os “erres” e “esses”. Misturo a polidez enganosa com a resistência da negação da autoridade. Sou herdeiro da temática acabada do caipira tímido. Vivi na zona rural botucatuense até os 10 anos de idade, quando vim para a “terrível e gigantesca área urbana”. Suburbano, cresci em meio a códigos de malandragem. Mas sempre fui meio “otário”. Neguei, durante muito tempo, o “jeito rouco de ser” do caipira-suburbano.
Nunca fui um exímio jogador de futebol, é bom que se diga. No entanto, meu pai era um ponta-direita lépido. Admirava suas extravagâncias nos flancos do gramado, a tomar botinadas de zagueiros ávidos por sangue. Fazia a caravana dos gramados. Inca, Sete de Setembro, Brasil de Vila Maria, Campo do Vitoriana, Campão de Anhumas. Sabia que, ali, naqueles territórios, estava protegido da mesquinharia das missas de domingo. Meu pai me salvava das punições sacristãs. Além do futebol em si, havia um convívio quase cruel entre nós, os meninos da periferia botucatuense: provações, testes de obstinação em que o mais importante era parecer audaz. Portanto, sou dependente, também, desse código de ética da desconfiança matuta do peladeiro amador.
Meu pai tinha (ainda tem, na verdade) um caminhão. Transportador de leite. Com sessenta e tantos anos ainda carrega latões no lombo. Naqueles tempos, levava-nos aos arredores de Botucatu para fazermos duelos epopeicos com “gangues” inimigas. Éramos forasteiros mal-encarados. Ou, pelo menos, fazíamos um esforço para sê-lo. Sempre tinha uma briga engatinhada e fabricada de antemão. Havia também disputas em torno do sentimento de conquista de território. Botucatu se impunha grande, impávida, em cidades como Torre de Pedra, Pardinho, Anhembi, Bofete. Antonio Candido, quando escreveu “Parceiros do Rio Bonito”, jamais imaginaria que, tempo depois, naquela região emblemática do “gigante adormecido” e da vida caipira mais elementar, algumas questões se resolvessem com a arrogância típica do enfrentamento de jogos e truques fundamentalmente urbanos.
Entre a adolescência e a juventude, desfiz-me das relações futebolísticas, e a cidade passou a ter outro significado para mim. As tampinhas eram mais visíveis nas calçadas percorridas. Chutá-las, uma consequência. A noite embalada de algo etílico era mais envolvente. Meninas cobiçadas a passarem lânguidas no footing. Moças a desfilarem, rapazes a beber. Quanta força tinha a canção. Longe das artimanhas dos campos de futebol, o rock n roll e seu universo eram companheiros da minha timidez. Morar em Botucatu é um presente e um calvário, em certa medida. Mas naqueles anos 1980 e 1990, muita coisa parecia incompleta. É como se a cidade nos pedisse permissão para entoar cantos de saliva doce. Seguíamos à risca suas sugestões. Quantas noites soltas por uma terra que nos cobrava um preço alto. De condutas e ações destemidas da juventude ingênua. E que caminhos fazíamos. Do Lavapés ao Centro. Do Bairro Alto à Vila dos Lavradores. Do pontilhão da FEPASA pra cima era tudo Vila dos Lavradores. Ou simplesmente Bairro. Subir o Bairro noite adentro. Subir a pé a Major Mateus. Chegar à Leonardo Villas Boas e, finalmente, parar em algum fecha-nunca. Bar do Fogaça. Respirar. Bar do Campeão. Respirar melancolicamente empreitadas e desilusões. Engendrar otimismos do futuro que viria. Fora dali ou ali mesmo. Naquele lugar que era nosso. A derradeira da madrugada. Uma partida de sinuca. Em Botucatu.
Botucatu, repito, carrega essa aura caipira e católica de dialogar com as coisas do mundo. Minha memória fragmentada não permite achá-la – a tal aura – em sua fatal orientação. Meus amigos de outrora, tenho a sensação, são de outra galáxia. O provincianismo de Botucatu arrasta qualquer sonho, embora haja um sentido universal em sua cultura. Tenho-a impregnada na pele e solta nas lembranças recônditas, quando brincava com os filhos dos ferroviários na Estação César Neto. Por mais que atravesse fronteiras distantes, o ar de sujeito incomodado com o excesso me excede. Perdoem-me o trocadilho. É que carrego nas minhas costas esses sentimentos católicos de provação. Não sou crédulo, ressalvo. Não me tornei um estereótipo padrão. Porém, essa caipirice arremeda a alma e as escolhas. Obsessivo e perfeccionista. Mas, contemplativo e despojado. Não sou bom para auto-adjetivações. Meus pais são pessoas cuidadosas no trato com o cotidiano. Herdei esse espírito afável dos homens justos. Entretanto, sempre tive uma desconfiança da classe média. Consciência de classe, diria algum interlocutor marxista. Não sei. Tudo isso pode ser muito tolo. Essas são pistas, no mais, de um sentimento em que a idéia de viver pode ser muito perigosa. Embalam-me na minha vaidade despudorada, portanto, ecos de Guimarães Rosa e de “crimes e castigos” deslocados nesses típicos paulistas que conheço só de olhar o arquejar do corpo. Há certa confusão em colocar ordem na rememoração. Desandamos a grunhir para os demônios de nossa consciência. Mino Carta, no recente livro “Brasil”, diz: “Creio que o tempo não exista, tudo ocorre em concomitância sem nos darmos conta, só percebemos o átimo presente, imensurável, e já se tornou memória, e a isto chama-se vida”.
Minha memória me trai. Quase sempre. Sei que Botucatu virou um quadro na parede da retina. Sei também que as necessidades de sobrevivência fora de lá são intrínsecas à minha natureza tímida, rústica. As ruas e suas tampinhas (eis a cara metáfora joãoantoniana) me são valiosas. Por meio das instabilidades do enredo, questiono em qual gaveta guardo Botucatu.
Lembro-me da Fazenda do Afonso, com seus pastos em imensidão. Lembro-me dos fantasmas rondando minha cabeça à noite, naqueles vazios espaços campestres. Ainda rondam em meus sonhos. Lembro-me dos bancos rasgados da linha de ônibus Cohab-Vila Paulista. Lembro-me dos sentimentos de culpa nos enlaces e nas desilusões amorosas. Botucatu me fez um sujeito educado. E não sei, ou não saberia dizer, se isso é um elogio. Uma virtude.
Minha obsessão talvez seja fruto das efemérides, dos fragmentos desconexos do tempo. Ao lembrar das cenas oníricas me vêem a cabeça a serra botucatuense e suas reentrâncias perigosas de abismo, a igreja Sagrado Coração de Jesus e os sermões “socialistas” de Padre Zezinho, a Avenida Dom Lúcio embalada em seus códigos de futilidade, o inferninho escondido em Rubião Junior.
Continuo a chutar tampinhas. Como o narrador-personagem do conto de João Antônio. Botucatu martela em minha mente o estalo. Sei o preço que a vida cobra, a partir da herança fraterna que chamamos de identidade. Sei que a memória é uma ilha de edição, como dizia o poeta Waly Salomão (1943 – 2003). Se a cultura é algo que herdamos, continuo a subir aquelas ruas íngremes e estreitas do centro botucatuense em meus incansáveis périplos, por mais distante que esteja daqueles paralelepípedos. A cada retorno, a cada visita, Botucatu me insinua uma dança de livre pensar. O tempo passa mais devagar em Botucatu. Por isso, esqueço-me, muitas vezes, de lembrar. Que amo. Amo Botucatu.
Cláudio Coração é botucatuense. Leciona e escreve por aí.
Obs.: Agradeço, carinhosamente, ao Sérgio por ter me convidado a escrever neste espaço.